Crónicas de Marisa Bueloni

 

Rosas roxas

Marisa Bueloni2

Marisa Bueloni mora no Brasil, na cidade de Piracicaba, Estado de São Paulo

É formada em Pedagogia e Orientação Educacional

É membro da Academia Piracicabana de Letras

Facebook: https://www.facebook.com/MarisaBueloni/

Blog:  https://donavidablog.wordpress.com

Contacto:   marisabueloni@ig.com.br

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BÊNÇÃO ESPECIAL  

 

ÍNDICE DAS CRÓNICAS DAS TERÇAS-FEIRAS

A partir de agora, os textos habitualmente escritos pela Marisa Bueloni vão passar a estar publicados no seus blog:

https://donavidablog.wordpress.com

 

 

Data

Título

Htm

Pdf

2017-11-18

Amar – verbo da felicidade

 

2017-11-11

Para alegrar nossos dias

 

2017-11-6

A Copa e as críticas

 

2017-11-2

Viver a vida...

 

2017-10-30

Buganvílias

 

2017-10-16

Sem pensar...

 

2017-10-2

Mensagem de esperança

 

2017-9-28

Declaração de amor

 

2017-9-19

Inatingível futuro

 

2017-9-12

Paz e Bem! 

 

2017-9-5

Sem perder a ternura

 

2017-8-29

Vasto mundo - 2

 

2017-16-8

Rumores do vento

 

2017-8-8

Onde mora o sonho

 

2017-8-1

Quero de volta

 

2017-07-25

A vida deu certo?

 

2017-07-18

Para sempre

 

2017-07-11

Passará...

 

2017-06-26

Sonhar não custa nada

 

2017-06-20

O amor cura e salva

 

2017-06-13

Pela janela da vida

 

2017-06-6

Quando eu crescer...

 

2017-05-30

Daria um bom filme?

 

2017-05-23

De onde vem?

 

2017-05-16

Nem mais, nem menos

 

2017-05-9

No Céu não tem fogão

 

2017-04-25

A nós descei, divina luz

 

2017-03-28

As pedras do caminho

 

2017-03-28

A vida não espera

 

2017-03-14

Bendito sonho

 

2017-03-06

A Todas as Mulheres

 

2017-02-21

De outros carnavais...

 

2017-02-21

Até que a chama se apague

 

2017-02-14

O cheiro da vida

 

2017-01-31

Enquanto chove...

 

2017-01-23

Beira-mar

 

2017-01-17

Retrato falado

 

2017-01-01

Sabedoria de Ano Novo

 

2016-12-21

Uma noite destas

 

2016-12-13

Bilhetes de amor

 

2016-12-10

Neste Natal

 

2016-12-06

A beleza do Advento

 

2016-11-29

E se a noite chegar...

 

2016-11-22

Malabaristas das ruas

 

2016-11-15

Retalhos da vida

 

2016-10-31

Dia de Todos os Santos

 

2016-10-25

Dor de amor

 

2016-10-11

Tempo de dar graças

 

2016-10-11

Fazer as malas  

 

2016-10-05

Humores do mundo  

 

2016-09-27

Bendita música

 

2016-09-18

Santo dos Anjos

 

2016-09-13

Lá detrás daquele morro

 

2016-09-06

Nada é muito importante

 

2016-08-30

Quem não tem cão...

 

2016-08-23

Luzes que se apagam...

 

2016-08-18

O amor não tem idade

 

2016-08-09

No baile da vida

 

2016-08-02

Luar na cozinha

 

2016-07-19

Teoria da dor - 3

 

2016-07-19

Anjos, passarinho e rosa

 

2016-07-12

Sob as graças de Leão

 

2016-07-05

Recomeçar

 

2016-06-21

Fé e coragem

 

2016-06-08

Um sentido para a vida

 

2016-05-24

A parte que nos cabe

 

2016-05-17

Se o amor chegar...

 

2016-05-10

No meu governo

 

2016-05-03

Poema - NÃO É NADA 

 

2016-05-03

Poema - Declaração

 

2016-05-03

Pausa necessária

 

2016-04-27

Eu voto sim!

 

2016-04-19

APTIDÃO PARA O SONHO

 

2016-04-12

Gripe Lava Jato

 

2016-04-05

Roupa de ficar em casa

 

2016-03-29

Quando o outono chegar

 

2016-03-16

A poesia do cotidiano

 

2016-03-08

Madre Tereza e a noite escura

 

2016-03-01

O valor do respeito

 

2016-02-24

O som do universo

 

2016-02-16

Como uma onda...

 

2016-02-02

Procurando assunto...

 

2016-01-26

Salmos que me cativam

 

2016-01-20

Para onde vamos?

 

2016-01-12

Passagem secreta

 

2016-01-06

Começar de novo

 

2015-12-31

Ano novo, velhas profecias

 

2015-12-23

Um Rei vem vindo

 

2015-12-15

O poder de uma carta...

 

2015-12-9

Para os que dormem tarde

 

2015-12-2

Pouca gente feliz?

 

2015-11-25

E assim caminha a humanidade...

 

2015-10-28

No Facebook da vida

 

2015-10-21

As coisas simples e belas

 

2015-10-6

Atchim! (Soneto)

 

2015-10-3

Bênçãos para todos nós

 

2015-10-2

CORPO (Poema)

 

2015-10-2

SINO OU TAMBOR? (Poema)

 

2015-9-30

A boa palavra

 

2015-9-24

Nada de novo no front

 

2015-9-16

A crise vai bem...

 

2015-9-2

Descobri um novo planeta

 

2015-8-27

O tempo azul

 

2015-8-19

Piracicaba que eu adoro tanto!

 

2015-8-12

A grande viagem

 

2015-8-5

Palavra & Sonho

 

2015-7-29

Graça Feminina

 

2015-7-24

Começar de novo...

 

2015-7-15

Para guardar no coração

 

2015-7-10

Inspiradora vida

 

2015-6-23

Da matéria dos sonhos

 

2015-6-13

SINO OU TAMBOR?

 

2015-6-10

Memória

 

2015-6-4

Menos é mais...

 

2015-5-27

O mar e eu

 

2015-5-20

O planeta tem sede

 

2015-5-12

Crescendo com a vida...

 

2015-5-6

Minha mãe eu

 

2015-04-30

Bandeja de inox

 

2015-04-21

Inspirações de abril

 

2015-04-14

Livros & dores

 

2015-04-07

Uma Páscoa luminosa

 

2015-03-18

Tempo Pascal

 

2015-03-18

Teoria da Dor - 2

 

2015-03-18

Eu canto um salmo

 

2015-03-06

Fragmentos de um sábado

 

2015-03-02

Enquanto a chuva não vem

 

2015-02-25

Teoria da Dor

 

2015-02-21

Spazzio de La Pace

 

2015-02-14

Um olhar para o futuro

 

2015-02-05

Quando entardece

 

2015-01-26

Pobre mundo rico

 

2015-01-20

Um canto de paz

 

2015-01-13

Velho ano novo

 

2015-01-08

Deus sabe o que faz

 

2015-01-03

Sino ou Tambor

 

2014-12-25

Profecia

 

2014-12-17

As primeiras letras

 

2014-12-10

A força da fé

 

2014-12-4

Os cães não têm culpa

 

2014-11-25

Surto do bem

 

2014-11-20

A água nossa de cada dia

 

2014-11-13

Pobreza imoral

 

2014-11-8

O tempo de vida

 

2014-10-28

O país da esperança

 

2014-10-22

Sinfônica (Poema)

 

2014-10-21

Politicamente correto

 

2014-10-21

Poema pobre (Poema)

 

2014-10-21

Atchim! (Poema)

 

2014-10-21

Primavera anunciada (Poema)

 

2014-10-21

Visto(Poema)

 

2014-10-16

O mundo vai acabar

 

2014-10-16

O sabor das maçãs

 

2014-10-08

A alegria da esperança

 

2014-10-07

Infância(Poema)

 

2014-10-04

Espera(Poema)

 

2014-10-02

Integridade(Poema)

 

2014-10-01

A religião do amor

 

2014-09-28

Onde você estava?

 

2014-09-28

Meu Coração

 

2014-09-28

Pequenos Anúncios

 

2014-09-28

Cesta Básica

 

2014-09-27

Realidade e fantasia

 

2014-09-19

Vida Encantada

 

 

Saudade (Poema)

 

 

Força (Poema)

 

 

Trova (Poema)

 

 

A Dois (Poema)

 

 

Discurso Feminino (Poema)

 

 

Solidez (Poema)

 

 

Cotidiano (Poema)

 

2014-09-09

A vida é dura?

 

2014-09-03

Setembro

 

2014-09-02

Sonhando

 

2014-08-26

Em Tempo

 

2014-08-26

Vas

 

2014-08-26

Carta para um Príncipe

 

2014-08-26

Fenômenos de Aporte

 

2014-08-19

Vote em mim

 

2014-08-12

Essa febre…

 

2014-08-05

Meu reino por um travesseiro

 

2014-07-30

A sétima estrela

 

2014-07-29

Santo Elesbão

 

2014-07-24

Bola pra frente

 

2014-07-16

A glória pequenina

 

2014-07-16

Casar por amor

 

2014-07-16

Venceu o melhor

 

2014-07-16

Benquerenças

 

2014-07-16

Ataque do demo

 

2014-07-01

Conseguimos conquistar com braço forte

 

2014-06-24

Depois da Copa…

 

2014-06-14

Mulher entende de futebol?

 

2014-06-03

A Copa e as críticas

 

2014-27-05

Pessoa de Fé

 

 

Vasto mundo

 

 

Amorosa consciência

 

 

O bom combate

 

 

Em busca do tempo perdido

 

 

Esperança

 

 

No meu canto

 

 

Se o céu desabar...

 

 

Eis os tempos?

 

 

A vida é feita de escolhas

 

 

Luz para o mundo

 

 

Antenas da raça

 

 

Coisas que desaparecerão?

 

 

Num sábado à tarde...

 

 

Gosto demais...

 

 

Uma poeta à procura da poesia

 

 

O centro da alma

 

 

Ainda somos seis

 

 

Dona Vida

 

 

Não tenho medo de nada

 

 

No fundo do coração

 

 

Vária vida

 

 

Nem um dia sequer...

 

 

Guarde no cofre

 

 

 

3

=

 

 

 

Amar – verbo da felicidade

 

Marisa Bueloni

         Amor, um sentimento que não se explica. Por que nos apaixonamos por esta pessoa e não por aquela? As razões do coração são soberanas. Ignorar ou negar o sentimento também resulta em tristeza apenas. E, quando há desencontros, muita saudade...

            No amor, vejo duas pessoas tentando o sublime encontro de almas, a carícia da felicidade rondando suas vidas, a realização amorosa se completando, a química maravilhosa, um sentido biológico que vai além de qualquer explicação. Dos olhares iniciais à perpetuação da espécie.

            O encontro de dois corações será sempre motivo de grande celebração. Tema preferido dos poetas, o amor se mantém imbatível nas rimas da grande e imortal paixão. Sim, posto que é chama, será eterno enquanto dure. Vi meus pais se amarem um ao outro até o fim de suas vidas. Foram exemplo de um casamento cheio de companheirismo, respeito e profundo amor. À medida que ambos envelheciam mais se amavam.

            Sim, há momentos de desespero no amor, concordo. A partida súbita de um dos pares, tragédia irreparável. Há brigas no amor, há separações,  incertezas, inseguranças, medo de não ser correspondido. E há tanta espera!... Conheço pessoas que passaram uma vida inteira esperando pelo amor. Estão lá, sentadas à beira do caminho.

            Melhor não negar o amor, jamais. Sem medo dele. Nunca perder a alegria de viver por medo de amar. Amar é o verbo da felicidade. Amar faz o coração feliz e, se perdido, traz de volta o brilho aos olhos. Amar não deixa ninguém envelhecer. O amor rejuvenesce e devolve o frescor à face. Amar torna a pele bonita, os cabelos brilhantes e a alma leve. Há leveza no amor.  Não deve ser pesado e triste, ou não será amor.

            O fim de um amor se cura com outro? Acredito que sim. O coração fará uma grata surpresa a quem se abre para a vida: não se ama apenas uma vez. Uma das mais belas descobertas da alma humana será a de que é possível amar de novo e que o coração é inesgotável nesta capacidade maravilhosa.

            O amor propõe infinitas reflexões. Tentei, uma vez, enumerar cinco razões para amar. E me vi escrevendo dez, quinze, vinte. Deixei o texto de lado, porque ele dizia respeito somente a mim, era algo egocêntrico, cheio de subjetividade e, possivelmente, de valores um tanto radicais. Trato o amor de forma nobilíssima, supervalorizo sua essência divina e humana, dou ao amor um caráter que ele pode não ter. Não sei se todos ainda são românticos como eu. Da mesma forma como sou a última riponga, que ainda aprecia saia indiana, sandálias, pulseiras e colares, penso ser a última romântica neste mundo frio e calculista.

            E que o amor seja a nossa salvação.

 

Para alegrar nossos dias

 

Marisa Bueloni

         O mundo está desnorteado e confuso, as alterações climáticas dão claros sinais de que não são falácias, a humanidade padece de males estarrecedores, incluindo-se aí a corrupção generalizada. Por desgraça final, convivemos com a violência insana de quem atira para matar.

             O atirador dispara nas pessoas num concerto ao ar livre, nos fiéis dentro de uma igreja, em qualquer local, simplesmente atira. E depois se suicida. Um menino, cujos pais nunca o viram reclamando de bullying, leva uma arma na classe e mata dois colegas, ferindo outros tantos. Creio que muitos de nós fomos vítimas de brincadeiras infelizes na escola (ah, como sofri com minhas “orelhas de rato”!) e ninguém saiu atirando...

             Tais tragédias nos colocam em confronto com tantos valores, e com outras inúmeras questões, de como a família estaria cumprindo seu papel de educar, de amar e também ensinar a prática do amor. Sim, transtornos de personalidade existem e precisam de tratamento, mas nem sempre são detectados. A sequência terrível de mortes inocentes nos causa um profundo pesar e a sensação estranha de que o Mal (assim com M maiúsculo) parece rondar o planeta.

             Para alegrar estes dias sombrios, relatados com temor e angústia, venho propor o exercício da paz interior, da busca do equilíbrio pessoal, emocional e psíquico, por mais difíceis sejam as condições em que nos encontremos. Minha mãe costumava dizer “ninguém vive num mar de rosas”. Penso que não. Todos nós temos problemas, ansiedades e medos. Muitos suportam empregos detestáveis, rotinas desgastantes, dias sem graça e sem alegria. Costumo rezar para os que carregam cruzes pesadas. Há tanta gente neste caminho de dor.

             Para alegrar estes tempos de ódio, violência e desamor, proponho uma parada diária, um breve momento de reflexão sobre a nossa vida, nossa família e nossos amados. A casa abençoada, o carro necessário, nossa comida, nossa roupa e tudo o que nos cerca e de que dispomos, amorosamente. Demos graças. Graças pelo pão de cada dia. Graças por estarmos de pé, cumprindo a vida.

             Para enfrentar os terrores da noite, desviar a seta que voa durante o dia, livrar-nos da peste que ronda nossa morada, passar pelo vale de sombras e lágrimas, bendigamos ao Criador de todas as coisas. É do Alto que vem o nosso auxílio. Ore em voz alta: A nossa proteção está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra.

             Para alegrar nossos dias, não percamos a fé e a esperança. Compreendamos o outro, o nosso amigo e o nosso inimigo. Rezemos por todos. Conforme bem o declarou o papa Francisco, “estamos todos em construção”. A paz!

 

A Copa e as críticas

 

Marisa Bueloni

         Logo mais, estaremos (estaremos?) todos envolvidos pelo espírito esportivo de mais um mundial. A “pátria de chuteiras”, como dizia o saudoso comentarista Armando Nogueira, com o povo torcendo pela nossa seleção.

     Mas, para chegar até aqui, neste pouco efervescente clima de Copa do Mundo, um longo caminho foi percorrido e o povo demonstrou uma sabedoria louvável. Entre protestos e manifestações, ficou claro que nem só de ufanismo nos gramados vive a nossa nação. Palmas para quem compreendeu que ainda temos gritantes injustiças sociais e problemas graves para resolver.

Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que samba, praia, mulheres de biquíni, cerveja, cachaça, bola rolando, craques de brincos e cabelos espetados, cartolas comandando o show, e a onipresença de ex-jogadores que, segundo seus pares, seriam poetas se ficassem de boca fechada.

Quem havia dito que “Copa do Mundo não se faz com hospitais e sim com estádios” parece ter refletido melhor. Menos mal. O país carece de cabeças pensantes, de pessoas inteligentes, com luz e conhecimento acerca dos diferentes setores do cenário nacional.

     Mestre Zagallo não deixou por menos e botou a boca no trombone, revelando uma saudável lucidez política. Em anos idos, disse ao povo: “Vocês terão de me engolir”. E se foi humanamente indigesto, salvou-se de qualquer forma, por seus longos anos de serviços prestados ao futebol brasileiro.

Zagallo deu uma entrevista a um jornal carioca e saiu-se com estas palavras que percorrem a internet e incendeiam os “feicebuques” da vida: “As bandeiras não tremulam, apitos, camisetas estão encalhados nas lojas. O Brasil, às vésperas da Copa, não está vibrante em verde e amarelo. O Brasil está vermelho. Vermelho de vergonha. Vermelho de ver tanta corrupção. Vermelho de ver tanta maracutaia, tanta cara-de-pau dos governantes. Estamos vermelhos vendo grande parte de nossos políticos e poderosos sendo calados e comprados pela corrupção. O PT conseguiu tirar o brilho até do que o brasileiro mais gosta... É o vermelho tingindo de corrupção nosso verde e amarelo”.

Talvez o nosso coração esteja mesmo solidário com os milhões de brasileiros que esperam mais deste governo. Saúde, transporte, moradia, educação. Um povo que saiba ler e escrever, fazer as quatro operações, conforme sonhava Darcy Ribeiro.

Mas nem tudo está perdido. Ainda que as arenas não estejam prontas e algo fora de controle possa tirar o brilho da festa, resta-nos o esforço de passar ao mundo uma imagem de país hospitaleiro, sério e competente. Afinal, o evento da Copa tem sua importância, trata-se de uma modalidade esportiva que é a paixão do brasileiro e pode ter uma função social digna. Os campinhos de várzea se multiplicam em cada canto, atraem milhares de meninos que podem ter suas vidas transformadas para sempre.

     Mas, já se fala em recolher os mendigos de algumas capitais e vedar com tapumes os lugares feios, esgotos a céu aberto, obras inacabadas, aquela maquiagem de praxe.

     E la nave va...

 

 

Viver a vida…

 

Marisa Bueloni

         Deus terá preparado algo grandioso para cada um de nós. Ainda que muitos não acreditem, eu acredito. Creio firmemente que cada um carrega sua missão neste mundo e aqui está por alguma razão. Creio também que nada acontece por acaso. Há um sentido e um propósito em tudo o que nos acontece, sobretudo com relação às pessoas com as quais cruzamos. Ou que cruzam nosso caminho, feliz ou infelizmente.

Logo depois que fiquei viúva, fui a uma consulta médica e o doutor, muito gentil, sabendo do passamento do meu marido, disse: "Então, ele se foi. Mas você ficou porque sua missão aqui ainda não terminou". Deixei o consultório, entrei no meu carro e aquilo não saía da minha mente: minha missão aqui ainda não terminou. 

Nossa missão neste mundo é viver a vida. Nascemos, tivemos nossa infância querida (nem todos a tiveram assim...), passamos pela bela juventude dourada, que nos encheu de sonhos e um dia nos tornamos adultos para sempre. Vem a fase da maturidade, do casamento, dos filhos e depois os netos, num ciclo perfeito, que vamos cumprindo agradecidos e maravilhados. 

Viver a vida é também estar atentos à nossa volta e não perder um momento sequer onde possamos aprender algo e crescer como pessoas. Borges dizia que, se pudesse voltar atrás, teria dado mais voltas no seu quarteirão, pisado em folhas secas, visto mais vezes o pôr-do-sol, contemplado o céu...

O papa Francisco também diz coisas lindas, que se referem a uma vivência plena da nossa existência como seres humanos. Devemos amar mais, sorrir mais, perdoar mais. Não nos preocuparmos tanto com os problemas. Não dormir pensando nas nossas contas...

Ah, meu Deus, como tudo isso é importante! Não passar indiferente a um raro jardim com rosas. Onde estão as roseiras de antigamente? Não se vê mais a fachada das casas, a maioria com muros altíssimos e portões eletrônicos. Temos agora a arquitetura do medo e do aprisionamento. As casas são fortalezas para enfrentar um tempo violento. Quem vai se dar ao trabalho de cultivar um jardim? Bastam os muros e alguns pinheiros verdes para atenuar a dureza da pedra.

Talvez você sinta falta das rosas e dos jardins. Agora, eles existem secretamente, nos condomínios fechados. Minha casa da infância tinha um terraço gracioso, dois bancos de madeira com pés de ferro e uma trepadeira vistosa que dava florinhas cor-de-rosa, delicadas. Quem passava na rua parava pra olhar. Meu pai tinha orgulho do jardinzinho em frente à casa e eu, menina, varria as folhas vadias sob um céu arrebatador.

Viver a vida!... Ter a esperança de que alguém em particular atenda o meu pedido humilde e compre para o seu cão a coleira antilatido. Apenas isso, meu Deus! Para que tenhamos paz dentro da nossa casa, e nosso coração não passe por esta arritmia de fundo emocional, causada pelos anos de sofrimento e luta. Paz e Bem!

 

 

Buganvílias

 

Marisa Bueloni

         As bênçãos de Deus caem sobre nós como buganvílias roxas. Buganvílias são as coloridas “primaveras”.  Mas não custa nada dar a elas o ar culto da erudição. No Aurélio do computador, são conhecidas também como “trepadeira lenhosa, da família das nictagináceas”. A Bougainvillea spectabilis apresenta “flores insignificantes, mas incluídas em magnas brácteas membranáceas, inseridas três a três, e de cores fortes: alvas, róseas, vermelhas ou roxas. Não produz fruto.” São sinônimos: buganvília, cansarina, primavera três-marias e, no plural, sempre-lustrosas.

        Pronto! Qualquer um vira inteligente com uma informação deste naipe; qualquer fugido da escola consegue imprimir ao texto um verniz de sabedoria e cultura, se pode contar com a ajuda do “pai dos interessados”. Dos interessados em aprender e ampliar seu vocabulário.

        Como será o vocabulário das buganvílias? Sobretudo das que tingem os nossos olhos? Já viram aquelas roxas, misturadas às rosas e brancas, que emolduram os muros das casinhas graciosas e aparentemente solitárias, ou que espetam aos ares os seus galhos floridos, sussurrando versos pelos alpendres e varandas?

        E quando às buganvílias se juntam as flores tímidas da folhagem conhecida como “Lágrimas-de-Cristo”, tudo se explica na perfeição de quem as plantou juntas, para crescerem irmãs. Se uma tira a força da outra, pode não ser verdade, pois ambas florescem bonitas e viçosas e dão flores a não mais poder. Cachos carregados das “lágrimas” me fazem ver o Senhor carregando a cruz e derramando pingos de sangue pela Via-Sacra de pedregulhos.

Estas trepadeiras lenhosas têm o hábito de soltar flores e folhas e nos obrigam a varrer o chão. Mas embelezam como certas coisas maravilhosas que existem apenas para embelezar o mundo e pelas quais deveríamos ser gratos.

Algumas pessoas são assim. Vivem para tornar tudo mais belo, gracioso e gentil a sua volta. São delicadas, usam perfume, sabem dizer “obrigado”, “com licença” e “por favor”. Vestem-se com discrição e simplicidade. Elas próprias são a jóia da vestimenta, a alma da elegância e do comedimento. Parecem ter saído de um livro de Gloria Khalil. E por isso não vão a um velório de vermelho?

        Era uma vez um menino que brincava de guerra. E do seu tanque disparou uma flor. Nada de tiros. Somente flores. Ainda que insignificantes, as buganvílias são torpedos explosivos, coloridos, que se desfazem ao sabor do vento e enfeitam calçadas soluçantes. Quem for capaz de ouvir o gemido de uma calçada que soluça, toda vez que recebe a flor em seu colo, compreendeu o sentido da vida.

 

Sem pensar...

 

Marisa Bueloni

         Escrevo numa página de Cultura deste jornal e não abordo assuntos propriamente culturais. Dedico-me à crônica, este maravilhoso gênero literário e jornalístico, que tanto enriquece a cultura em geral. Espero contar com a simpatia do querido leitor.

        O cronista tem grande liberdade de expressão, e assim pretendo manifestar aqui meu desalento com o que fazemos sem pensar. Sem pensar... Quantos arrependimentos isso já nos causou? E quantas noites em claro ainda passaremos, por fazer ou dizer algo sem pensar?

        Refiro-me, também, aos assuntos do coração, mas incluo aqui todas as demais turbulências do relacionamento humano, ousadias da juventude,  inseguranças da idade adulta e, depois, as escorregadelas do tempo provecto, quando cabelos brancos não querem dizer absolutamente nada.

        Os fios de prata por baixo da cabeleira loira apontam apenas para uma tempestade hormonal que teima em percorrer corpo e alma, como se neles pedisse moradia fixa. Sem querer, magoamos quem mais amamos. Tem volta? Depende.

        Pedir perdão é um gesto da mais pura nobreza. Pedir perdão e saber perdoar. Duas mãos, dois tesouros. Desejo de restabelecer a harmonia comprometida, a amizade desfeita. De minha parte, luto para não ofender ninguém. Contudo, numa situação inesperada, onde nos sentimos atingidos em nossa dignidade, podemos, sim, cometer o grave deslize da ofensa.

        Quem não viveu algo parecido? Quem já se sentiu perdido e desnorteado perante o outro, sabe como é. Há equívocos, desentendimento, confusão. Sentimo-nos humilhados e, por um segundo de irreflexão, perdemos a paciência, vindo a nos arrepender pelo resto da vida.

        Mas, ah! E quando o outro entende que foi o causador da confusão! Quando percebe que, sim, foi ele mesmo o autor do desatino e nos perdoa pela nossa destemperança. E então, vem um e-mail doce e compreensivo. Uma mensagem de bandeira branca, acenando a reconciliação. O coração pula de alegria e até o sono da noite se recupera.

        Temos de ficar atentos a esta trama diabólica que é a emissão da palavra, seja dita ou escrita. Uma vírgula mal colocada pode dar início a algo bem tempestuoso.  Felizmente, um final feliz e pacífico surge no horizonte, quase sempre, e a vitória do bom entendimento reina de volta.

        Certamente, caro leitor, você também já fez das suas, num momento de precipitação. Todos nós fazemos. E a desculpa está justamente neste fato: foi sem pensar. Dizem que de pensar morreu um burro, mas pensar muito nunca será considerado excessivo, quando a questão é a boa palavra, o bom relacionamento, a bonança entre tudo e todos.

        Sem pensar? Nunca mais!...

         

 

Mensagem de esperança

 

Marisa Bueloni

         Se os tempos são sombrios, existe um contraponto feito da coragem que brota em muitos corações. Precioso é encontrar gente de boa vontade, com força para construir um mundo mais humano. Por mais utópico pareça, devemos crer na vitória do bem contra o mal.          

            Refiro-me à fé, à esperança, ao amor fraternal que une homens e mulheres em torno de um mesmo ideal, de um sonho a ser vivido e partilhado. A construção de uma sociedade justa, onde os direitos sejam respeitados. Por vezes, nos sentimos desesperados diante de tanta corrupção e violência. É quase natural a sensação de desamparo e de abandono, como se cada um de nós tivéssemos de nos impor perante nosso semelhante, cuidando cada qual da própria sorte, uma vez que a ordem parece abolida em toda parte.

            Que ninguém se deixe intimidar pelo medo. Por mais tenebrosos sejam estes dias, a esperança deve imperar em nossas almas. Ela nos ajudará a superar as dificuldades do dia-a-dia, para enfrentarmos com coragem a própria insegurança de sair às ruas, de viajar, de abrir os horizontes da vida, sempre tão fascinantes e tão novos.

             As trevas avançam, mas a luta em favor do bem comum deve prevalecer. Entendo que a harmonia da paz e da bonança vem de uma pronta colaboração de todos para com as normas e regras vigentes que dão suporte à vida de todos nós, gostemos ou não. Do convívio dentro de um condomínio até a participação efetiva na vida pública.

            Há quem não se adapte ao ritmo trepidante das cidades e prefira se refugiar no campo, em busca de tranquilidade. Neste tempo atribulado, em que se digladia contra tantos males e perturbação do sossego público, o homem voltou a sonhar com uma vida de mais simplicidade e mais pureza.       Sim, talvez o coração humano tenha se cansado da abundância de bens de consumo à sua disposição, voltando-se para interesses que dizem respeito à qualidade de vida.

            Que o espírito humano não perca jamais a curiosidade, o ânimo e a alegria. Vivemos uma batalha, é verdade. Todo homem, hoje, é um soldado de si mesmo.            Mas pode-se empreender combates que não signifiquem carnificina, perdas, mortes. Há guerras santas e limpas, como as que se travam em favor da igualdade de direitos e da justiça.

            Há um combate espiritual maravilhoso que podemos exercer o tempo todo. Cada um de nós pode se revestir da divina armadura e com ela resistir. Trata-se de um revestimento que blinda a criatura humana, preservando-a dos mais terríveis ataques. Que seja colocada em nós a couraça da justiça, o capacete da salvação, o cinturão da verdade, o escudo da fé e que se tome da espada do Espírito, para se lutar como lutaram os santos de Deus.

 

Declaração de amor

 

Marisa Bueloni

         Para que não pairem dúvidas, digo que estou comprometida com minha fé, minha esperança, minha crença na vida, nas pessoas queridas, aquelas que amamos no mais fundo do nosso coração. Tão bom querer bem, amar, ser amado, encontrar gente linda e risonha, quando os abraços se multiplicam e os corações batem juntos. 

          

            Estar apaixonado pela vida é um exercício de profunda beleza, apesar de toda a luta, sofrimento e dificuldades que tenhamos pela frente. Quem não os tem? Problemas não faltarão em nosso caminho. Note que mal vencemos um aparece outro. Costumo ouvir e acabo dizendo também: a gente não tem sossego. Minha mãe falava assim: se não é uma coisa, é outra.

 

            Mas o amor pelo belo mistério da Criação nos extasia os sentidos e nos eleva o espírito. Orar em silêncio e louvar o dia que nasce! Uma manhã de céu azul e um pouco de vento me convidam a sentar nas cadeiras brancas do quintal, secar os cabelos ao sol de um setembro tão quente como os meses do verão.

 

            É setembro no tempo e eu nem percebi. Porque estou apaixonada pela vida e seus humores. Aceito de coração o que Deus me mandar, seja lágrima, seja riso, porque assim é possível compreender melhor a razão de nossa existência, a doçura e a graça que nos cercam. Não, nem sempre é só doçura. Há muita coisa pela qual lutamos, pela paz e silêncio à nossa volta.

 

            Costumo dizer que tudo é graça. A graça divina. Estar de pé todos os dias é uma bênção inenarrável. O ato de viver é vário e apaixonante, sempre. Despertar, preparar a primeira refeição da manhã. Há dias em que até as frutas acabaram,  ficamos no abençoado pão com manteiga e uma xícara de café com leite. E como é bom, Pai de amor!

 

            Ligar o rádio e ouvir “all you need is love”. Sim, tudo o que você precisa é de amor. Basta o amor para um ser humano sobreviver. O amor entre as pessoas é como a água para uma planta. É algo vital e imprescindível. Sem água uma flor morre. Sem amor, uma pessoa pode morrer também. Ou se matar.

 

            Minha declaração de amor é ampla, geral e irrestrita. Ela abraça a tudo e a todos, sobretudo as pessoas que conheci ao longo da vida, os amigos da escola, do primário à faculdade, os professores tão queridos, mestres inesquecíveis, as irmãs de São José do Colégio Assunção, todos tão presentes na memória do afeto, da lembrança que não morre jamais.

 

            E assim existimos, neste amor universal que nos une a todos, na face de uma Terra que parece viver os estertores finais. Furacões tremendos, terremotos, tsunamis, inundações, secas, incêndios, em claros sinais de que o homem deve repensar sua ação no planeta. Será tarde demais? Tomara que não.

 

 

Inatingível futuro

 

Marisa Bueloni

         Quando se é criança, a vida não apresenta preocupações. Nem mesmo com o futuro. A infância é um período maravilhoso, sagrado, e toda pedagogia a ela dirigida deveria vir de um único elemento: o amor. Criança necessita tão somente ser amada. Precisa da proteção dos pais e de quem dela cuida.

            Quando jovens, somos chamados ao estudo, à busca de uma profissão que nos garanta um futuro. Pais se desesperam com as notas baixas e a falta de interesse dos filhos. Trata-se daquela fase em que os adolescentes se tornam seres humaninhos um tanto indóceis.

            A vida prossegue e chega-se à vida adulta. Aí reside o busílis.    Se já tenho um diploma, vou batalhar pelo emprego e este talvez nem seja na área da minha especialização. Vocação é o que menos conta nessa hora e, com a crise atual, agarra-se o que primeiro vier pela frente, é preciso sobreviver.

            A vida é feita de escolhas, dizem, e nem sempre isso é verdade. Reparou como há situações em que nem há o que escolher? É pegar ou largar. Decisão crucial, mas terá de ser feita com o coração nas mãos. Depois, se aparecer algo do nosso gosto ou inclinação, então talvez mudemos de profissão.

            Tudo é feito pensando no futuro. Mas ouso afirmar que o futuro é cada dia vivido. Cheguei à quântica conclusão de que o futuro não existe, meus amados! Trata-se de uma ilusão de ótica das mais perversas ou das mais interessantes, depende do ponto de vista com o qual se olha para ele.

            Notou que o futuro nos pega em cada momento, em cada esquina da vida? Ele estava lá atrás, nos bancos do grupo escolar e depois nos viu de saia pregueada, meias três quartos e gravata colegial. Ficou do nosso lado descendo a rua para ir à faculdade. Esteve conosco em cada turma da qual fizemos parte, das músicas que cantamos, dos amigos e       das ideias partilhadas acerca do futuro que nos salvaria de todas as dores. Ou de nós mesmos.

            Ouso afirmar que o futuro é o momento presente, um reverso de sucessivos anos e meses. Ali estava o germe da nova manhã, ou seja, o dia seguinte. Este também se configura como futuro. Amanhã começo um regime. Amanhã.

            O futuro é a cenoura pendurada na frente do burrinho?  Ele puxa a carroça, ela balança para ele, o burro quer pegá-la, mas ambos avançam e nunca que ele a alcança. Inatingível futuro.

            Ouso afirmar que o futuro é hoje e que se esconde na dobra do tempo. Na nossa alma pequenina. Em cada vitória ou fracasso. Em cada vergonha ou em cada orgulho. O futuro está na palma das nossas mãos, no pão sagrado da nossa mesa, nos sonhos do nosso coração. Meu pai dizia sempre que “o futuro a Deus pertence” e esta é a mais bela premissa da vida.

 

Paz e Bem!

 

Marisa Bueloni

         Necessito da paz como do ar que respiro.  Quietude e silêncio são dons do Espírito, que nos acalmam e nos dão a sensação benfazeja de plenitude em todos os sentidos, sobretudo em nosso íntimo. É lá, no fundo do coração, que tudo se processa. Nossos sentimentos e emoções, nossas angústias e medos, nossa coragem e nossa esperança.

        Leio sempre que a paz é fruto da justiça e isso se aplica também ao sentido social, a uma situação em que todos os cidadãos podem desfrutar dos mesmos benefícios e direitos concedidos em igualdade de condições, de forma que ninguém se sinta lesado ou prejudicado. Mas, penso, trata-se de uma paz utópica, pois o mundo está mergulhado nas mais cruéis formas de injustiça, corrupção e violência.                   

        Contudo, se Deus nos permite, e se somos merecemos dela, devemos lutar pela paz em nossas vidas, no lugar onde moramos, no cantinho sagrado onde repousamos nosso corpo físico, digno descanso. Para mim, usufruir horas de silêncio para ouvir música, ler, escrever, meditar, é um luxo maravilhoso e absolutamente necessário. Sobretudo, poder dormir o abençoado sono da noite, que nos faz acordar inteiros e dispostos.

        Li, recentemente, o desabafo e o apelo de um colega jornalista, acerca de um galo que cantava num terreno próximo ao prédio onde mora.  Ele e muitos vizinhos estavam sem dormir. Parece que o problema foi resolvido. Ah, Meu Deus! Sou solidária, entendo perfeitamente a situação, pois andei passando por algo parecido e luto pelo direito de ter silêncio ao meu redor.

        Todos em busca da paz! Sei de casos em que a pessoa foi, simplesmente, forçada a vender o apartamento, premida por quem, de propósito, sapateava no andar de cima, ou arrastava móveis. Há quem precisou se mudar de casa, por não aguentar o rádio do vizinho. Quanto mais se pedia para baixar, mais alto era o som.         

        A consciência de que vivemos em comunidade e o dever de respeito ao próximo têm a ver com a alma, a formação moral e o caráter de cada um. O mundo é feroz, há muita gente insensível, e a humanidade se digladia na falta de entendimento e de amor. Não é difícil resolver os conflitos do convívio diário. Basta boa vontade, educação, civilidade, e entendimento de que não sou uma ilha, há pessoas a minha volta e não devo perturbar o sossego público.

         Enquanto uns lutam pelo silêncio, de dia ou durante a noite, pelo direito de estar na sua casa, de morar nela sem suportar ruídos e som alto, latidos de cachorros, canto de galo na madrugada, etc, de outro lado existem os síndicos, os administradores de condomínios que aplicam multas, os órgãos e entidades ambientais que fazem cumprir a lei e protegem os cidadãos. Deus os abençoe.

 

Sem perder a ternura

 

Marisa Bueloni

         A poesia pede passagem. Concedo-lhe. Amar o perdido também deixa confundido este pobre coração. As coisas tangíveis, disse o grande poeta, tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas / muito mais que lindas / estas ficarão. Eterno Drummond.

          O livro do Eclesiastes, da Bíblia, vem em meu socorro: “Tudo é vaidade e vento que passa”. E a vaidade do homem enredado na internet? Cheguei aonde queria. O computador, os aipedes da vida e tudo o que nos conecta com o mundo num piscar de olhos.

          Houve um tempo em que abominei esta tecnologia, beijando os indicadores em cruz, jurando jamais sucumbir ao frio apelo da modernidade. Máquinas e eu somos de uma incompatibilidade mortal.  Até para operações no caixa eletrônico me atrapalho toda e acabo pedindo ajuda à moça do banco.

          Maravilha era ter uma Olivetti Lettera 32 cor-de-rosa, julgando que um texto saído da máquina de escrever tinha mais alma? Penso em nossos pais, avós e bisavós, que não tiveram computadores em suas casas e viveram tão bem. Ora, conheço pessoas que ainda sobrevivem sem celular.

          Enfim, as exigências da vida moderna nos obrigaram a capitular e a sucumbir.  Cérebros eletrônicos constituem uma concepção destinada a quê? A melhorar a vida das pessoas, certamente. A comunicação de hoje é algo fantástico, embora se questione se esta tecnologia teria eliminado de nós a emoção. E se a nossa solidão não seria ainda maior...

          Mas um e-mail de amor, ou de amizade, vem recheado de beijos, corações e flores. Rendo toda a minha mais profunda admiração ao carinho virtual, à nova linguagem, às cifras e formas de expressão, às mensagens e sua arroba indefectível.

          Sim, enterramos a máquina de escrever, a caneta-tinteiro, o bonde, o leiteiro das manhãs. O dinheiro virou um cartão de plástico, cuja senha não pode ser esquecida e o que mais temos na vida hoje é isso: senhas para decorar. Haja memória!

          Vejo multidões digitando uma maquininha, as expressões absortas, perdidas, distantes. O mundo pode acabar e eles estarão ali, sérios ou rindo, mas concentrados, passando com o dedo indicador sobre a tela, arrastando imagem após imagem, num gestual que tomou conta do mundo, dos pequeninos até os mais idosos. A humanidade se encantou com esse brinquedinho.

          A crônica ainda se espreme. Passou por um processador de texto e chegou até aqui. Não parece exausta, tampouco perplexa. Apenas viu como  as palavras fluem rápidas no teclado ágil e necessário.

O que é necessário, meus caros? Que não se percam o sentimento e a emoção. Que ainda reste um pouco do romantismo e do lirismo de outros tempos, embora embalados na tecnologia do assombro.

 

Vasto mundo - 2

 

Marisa Bueloni

         Ocorre-me, frequentemente, pensar no sentido da vida e no significado do mundo. A velha e boa pergunta: de onde viemos, para onde vamos e o que estamos fazendo aqui, no planeta azul. Acontecem coisas boas e coisas ruins a todos nós, não temos controle sobre a maior parte destes fatos e aceitamos sua sequência cósmica sem reclamar.

            Neste vasto mundo de tragédias e espetáculos, de países atormentados pelo terrorismo, pela seca ou pela fome, nesta terra de tantas faces, neste solo onde fincamos nossa esperança, buscamos o equilíbrio necessário para enfrentar de tudo.  Alegria, mágoa, dor, luta, sofrimento e o imponderável da vida, qual seja sua forma de ação.

            A vida apresenta-nos a bondade diária do sol. Minha mãe costumava dizer que “o sol Deus dá”, e o resto cabe a nós fazermos, realizar, dar conta de tudo, pois o dia é comprido e nele cabem todas as nossas tarefas. Se Deus nos dá a graça cotidiana do astro-rei, descontemos os dias nublados em que nos pomos, quietos, a refletir sobre o vasto mundo à nossa frente e dentro de nós.

            A vastidão física do mundo se confunde, às vezes, com nosso universo interior, quando nos julgamos pequenos demais ou muito irrelevantes. Fazemos, então, a dolorosa comparação da nossa vida, da nossa realidade individual com a aparente felicidade do que acontece lá fora, com as luzes da ribalta que não se apagam nunca, as redes sociais onde parece reinar todo tipo de sucesso e de uma festa interminável.

            Neste vasto mundo, sobretudo no mundo real, toda celebração tem hora para começar e acabar. As luzes do salão se apagam e voltamos para a nossa rotina nem sempre esfuziante. Com o passar do tempo, e com a chegada da maturidade, compreendemos melhor esta vastidão interna que tem ressonância na nossa vida afetiva.

            Voltando ao arroz com feijão do trivial cotidiano, tudo se acalma. Temos nossa casa, nosso cantinho neste mundo, nossa cama aconchegante, nosso quarto bem arrumado, nossas coisas amadas, nosso reino pessoal, tudo nos devidos lugares e a paz nos assegura o bem. Sentimo-nos abençoados, se tudo está de acordo com a sensação íntima e avassaladora de certas horas.

            São muitas as sensibilidades terrenas, desde que nascemos. Do primeiro vagido até a mais recente emoção. E no intervalo desta epopeia, passa um filme na nossa cabeça, como se costuma dizer. Da alegria de subir num palco, aos 18 anos, para cantar num festival de música, até o último adeus à pessoa amada, vai um longo tempo de sensações, de vastas horas vividas sob o céu que nos protege.

             Vasto mundo! Se eu me chamasse Raimundo...

 

Rumores do vento

 

Marisa Bueloni

         Se o céu se abrir, direi que ainda estou nocauteada de sonho. Mas também indignada. As coisas dão uma volta muito longa para chegar onde desejam. Dona Vida é cheia de nove horas, reparou? Ela se adianta, se atrasa, chega bem no meio da festa e, às vezes, sai de fininho. Ninguém pode abrir a boca. Resta um caixão tristíssimo, flores de um perfume estranho, uma cova na terra, a conta maior que tiveste em vida.

        Se o céu desabar, não haverá como sair de baixo. Feliz de quem construiu seu próprio refúgio dentro do coração. É coisa espiritual, que não se compra com dinheiro do mundo. Não é algo físico, tipo uma construção segura, senhores.

        Na vertigem da vida, quero a exatidão do que não acontece. Do sonho não realizado. Da sorte que nunca tivemos. Do concurso que não ganhamos. Do encontro jamais tido. Do beijo não dado. Dá para entender? É como digo: melhor o mistério eterno que a revelação absoluta.

        Neste combate diário, a luta de viver é quase insana. Só não vamos à loucura completa, porque nos protegemos o tempo todo. Cuidamos das coisas importantes, das situações delicadas, dos afagos aos litígios.

        As coisas da terra são sempre muito sombrias. Devem ser mais belas e mais alegres as do Céu. Buscai as coisas do Alto. É para as alturas que dirijo meu olhar solene, à espera de solenidades. E assim, durante a confissão, num momento inspirado, em que os santos nos altares pararam para ouvi-lo, o frei me disse: “Minha filha, Deus conhece o barro de que somos feitos”.

        Neste inverno da vida, encanta-me o senso das folhas secas. Alisa-me a rosa dos ventos. Acordo do sono dos séculos. Abraça-me a força de que todos nós precisamos para ir em frente. Aposto sempre na esperança e evito os presságios. Pego o atalho mais curto que leva ao equilíbrio, à prudência e a um pouco de juízo. Só o necessário.

        O necessário da vida é tão pouco! Basta-me meia dúzia de coisas para ser feliz. Minha bioquímica é alegre, o ânimo acorda comigo a cada manhã.  Ainda dou conta de limpar a casa, podar o jardim, lavar minha roupa e fazer a comida. A exasperação do cotidiano fica por conta da violência e da corrupção do nosso mundo.

        Olho as frutas nas bancas e a floração de algumas coisas imperecíveis à minha volta. Adivinho um perigoso fragor de astros em colisão. O rumor das folhagens ao vento, o coração da Terra pulsando. O Sol se move entre as palavras. Perdida de amor, pergunto: Deus, por que fizestes tudo isso, assim, sem ao menos nos avisar?

        Homens de boa vontade! Seremos eternos, se construirmos o novo Éden perdido na memória. Saudade da pátria celestial? E as lágrimas não respondem à minha pergunta...

 

Onde mora o sonho

 

Marisa Bueloni

         Quero estar lá, onde mora o sonho. A algumas léguas da vilinha de pescadores, para comprar arroz, feijão, óleo, açúcar, farinha, peixe fresco, frutas e legumes. Que na casa tenha água potável à vontade, e por perto alguma cachoeira para banhos inesquecíveis.

        Perto do mar mora o sonho. Não me cansarei de sonhar e repelir qualquer imagem de oceanos subindo, invadindo ruas, inundando cidades. Esta visão é incompatível com meu sonho. E se o adiei até agora foi pensando nisso.

        Será que um dia crio coragem? Não, é apenas um sonho. E alguns deles, melhor nunca realizar, ou já não teremos com o que sonhar... Realizar um sonho pode dar um baita medo. E se a casinha na praia deserta existe e espera por mim?

        Não. Ainda não a vi. Em geral, tenho uma “visão no espírito”, tal qual tive da casa onde moro. Estava vendendo a chácara no Campestre e comprando casa na cidade. A corretora ia me mostrar imóveis num condomínio fechado. Enquanto me arrumava, “vi” esta casa que comprei. Os balcões de granito da cozinha, as pastilhas vitrificadas decorando parte dos azulejos.

        A casa onde moro foi a primeira de cinco que visitei naquele dia. Estando nela uma segunda vez, para me certificar da compra, tive uma “visão” de mim mesma escovando os dentes no banheiro da suíte. Tudo isso foi me dando certeza de que era esta a casa a ser comprada. Fechei o negócio.

        Ainda não tive a “visão” de uma casinha solitária, num local de paz, onde habitar em segurança. Não avistei a varanda e a rede, o luar e as estrelas; não ouvi o sussurro do coqueiral ao vento e a música marinha chamando minha alma eternamente.

         Lá onde mora o sonho quero estar. Por entre as brisas quentes, as tardes sem destino, sem horário, sem cansaço. Apenas um corpo refletindo o merecimento de estar vivo entre os vivos. Para comer o abençoado peixe, os frutos da terra e da Criação.

        Penso em Deus e de como Ele tem conduzido minha vida. Do quanto me enganei toda vez que O impedi de agir, quando tomei a frente e errei. Sua bondade corrigiu o desvio, apontou a rota, e me salvou para sempre. Deus é fiel.

        Tenho contado com Ele para a realização deste sonho. Daqui a alguns anos, talvez. Quando sentir que chegou a hora. Espero ter sabedoria suficiente para reconhecê-la. Momento inspirado. Vender minha casa, juntar o suficiente para encarar uma casinha à beira-mar e deixar o sonho acontecer.

        Alguém quer ir comigo? Tem gente disposta a viver esta aventura marinha? Visitar praia por praia de um litoral bonito e procurar pela casinha final. Tem missa na capela? E a cidade, fica muito longe, moço? Não, dona, é logo ali.

        Logo ali é o sonho.

 

 

Quero de volta

 

Marisa Bueloni

         Houve um tempo de sonho em nossas vidas? Sim, houve. Por mais jovem alguém seja sempre terá algo a recordar, mesmo da recente infância, das brincadeiras que não se brincam mais, porque o celular roubou todas as imagens, todas as conversas ao vivo, toda a ventura, todo o... Paremos por aqui.

        Para que criticar o celular, se dependemos tanto dele? Estamos aprisionados a um sistema irreversível. Algumas coisas ficariam totalmente esquisitas no contexto atual.  Ah, senhora dona Sancha, coberta de ouro e prata! Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar. Para o meu amor passar.

        Quero de volta a minha Piracicaba de antigamente, de pouco trânsito e muita beleza, um convívio maravilhoso entre as pessoas.  Tudo evolui, as coisas mudam. Mas, hoje a Noiva aniversaria e celebro a cidade que amo de todo o meu coração.

        Quero de volta, se possível, a barraquinha de doces que ficava parada na porta do Grupo Barão. O “baião” de coco queimado, que incendiava nossa alma e nossa alegria.  O amendoim torrado, os bijus. Posso ver a face serena do vendedor, “seu” Guido, que povoa a saudade e a memória.

        Era um tempo de realejos e serenatas, de pular corda e jogar bola na rua com os primos, até a lua nos mostrar a face primitiva de Deus. “Entra, menina e, antes de dormir, vai lavar o pé”. São dois, mas a ordem era “lavar o pé”. Para pular da cama na manhã seguinte, na ânsia bela de viver.

        Minhas irmãs mais velhas ganhavam serenatas. Acordava achando que estava no céu de todos os céus, uma sensação sublime. A ganhadora da seresta acendendo a luz do terraço, meu pai apagando, e a briga deliciosa entre os dois. “Pai, é de bom tom acender a luz”. E as cordas plangentes do violão ressoavam pela noite infinita.

        Os filmes bobinhos com Rock Hudson e Doris Day, a beleza de se arrumar para ir ao cinema! A expectativa do sábado e toda a sua magia encantadora. Os rapazes esperando a saída da sessão, as moças na paquera, o começo dos namoros.

        Recordo o terraço florido da casa da infância. Os dois bancos de madeira, com pés de ferro, cavalos bem firmes, suportando o peso das ripas nas extremidades. Ali nos reuníamos para conversar, para pegar as florinhas cor-de-rosa da trepadeira que fazia sombra na leitura. Passava um conhecido do meu pai e a pessoa fazia menção de tirar levemente o chapéu da cabeça. “Tarde!”.

        Aqui nasci, cresci e jamais saí desta pequena cidade maravilhosa. Piracicaba que eu adoro tanto!

 

A vida deu certo?

 

Marisa Bueloni

         Li uma frase assim: “É com amor e com afeto que a vida vai dando certo...”. Será que vai mesmo? A vida deu certo pra você, meu anjo? Às vezes fico meditando nisso, se segui a minha estrela, ou se ela continua me seguindo até hoje.

            Espero ter visto o astro logo depois de nascer e percebido qual seria o meu verdadeiro destino. Se isso é possível. Aquela história de que um Serafim nos visitou e disse algo sobre nós... Enfim. Que o Anjo amado permaneça conosco, pois avançamos no tempo. Sobretudo quando já se completou 67 voltas em torno do Sol.

            Sim, aniversariei domingo. As pessoas costumam dizer “mais uma primavera”. Mas eu completo primaveras no inverno, no mês das férias escolares. E ficávamos sem os parabéns, a classe toda cantando para o aniversariante. Mas, alguém sabe o que são férias de julho na infância querida, na aurora da nossa vida?

            Vivi este tempo amorosamente, os casaquinhos de flanela feitos pela minha zelosa mãe, a semana feliz passada no sítio dos tios. Varais sob o céu de puro azul, guardanapos alvíssimos secando ao sol.  Milho verde assado na brasa.  O pão feito em casa da tia Filomena, as noites estreladas no terreiro da casa. O sonho de ser uma menina em julho.

            Tudo deu certo? Não sei. Fiz três faculdades, estudei muito. Creio que me casei com a pessoa certa, fui felicíssima num casamento de 36 anos, até que a morte nos separou. Duas filhas de ouro, e netos para esta fase em que somos chamados a um recolhimento natural. Então, estar com eles é um presente do céu.

            Ao longo da vida, onze intervenções cirúrgicas, sendo nove com anestesia geral. O Serafim teria previsto tudo isso? Mas não havia alternativa e lá ia eu para o centro cirúrgico, de onde acordava cheia de esperança: está será a última. A última foi em 2005. Estou celebrando 12 anos sem cirurgias.

            Algo deu errado?  Sim, tanta coisa sai errada na vida da gente. Umas têm conserto, outras exigem tempo. Ou resignação. Mas penso na moça linda, a atleta Laís Souza, que treinava na neve, em 2014, sofreu uma queda e está tetraplégica. Nos meus terços, rezo para os que têm de passar a vida numa cadeira de rodas. Rezo para os que carregam cruzes pesadas, pelos que lutam com a dor. Pelos coroados com o sofrimento.

            “Ninguém quer a morte / só saúde e sorte”, diz a letra de uma música de Gonzaguinha. A vida é bonita quando tudo vai dando certo, quando sonhos são realizados, quando se consegue ser feliz. Saúde e sorte. Mas, Dona Vida nos causa surpresas duras pelo caminho. Sabedoria e paciência para conviver com elas. Deus nos abençoe e proteja. Amen.

 

Para sempre

 

Marisa Bueloni

         Há coisas belas demais e que não podem nunca ser descartadas. São caixas cheias de saudades, guardados que dizem respeito somente a nós e ali permanecerão, até que, depois da nossa partida, os filhos ou um irmão querido venham a nossa casa fazer a limpeza de praxe... Temo por este momento. Assim, mantenho tudo em rigorosa arrumação, pois quero que encontrem ordem e organização nos meus armários e gavetas.        

    Há muito a ser preservado enquanto vivemos. A mesa da sala de jantar e sua história de décadas. A abençoada bandeja de inox que serviu tanto e continua tendo sua utilidade no universo doméstico. Todos os retratos na parede, todas as fotos em branco e preto, ainda não emolduradas. Estão ali, testemunhando um passado de sonho.

    Guardei os lenços do meu lindo. Guardei a carteira com os documentos e até a carteirinha do plano de saúde. Guardo algumas coisas essenciais. Para tocar e sentir na pele a saudade, a força de um tempo que, se não volta mais, pelo menos é revivido na memória como pequenas joias de afeto e beleza.

    Onde mais guardar, senão no coração, estes tesouros que cada um conhece muito bem? O coração é a casa do amor, a profunda morada do bem e da bondade. É nele que repousam as nossas relíquias mais importantes, tesouro inestimável.

     Ao longo da vida, algumas coisas vão se despedindo de nós, deixando de existir, por diferentes motivos. Um dia, tivemos um bem material que nos foi muito caro. Uma bicicleta com marchas, com a qual nos divertimos; uma casa muito bem decorada e cheia de quadros; livros, livros e mais livros; colchas bordadas, porcelanas, muitas malas, bolsas e sapatos.

    O tempo passa e já não precisamos de muita coisa. Diminuímos visivelmente os objetos à nossa volta. A casa passa a se chamar “aconchego” e nela cabe o necessário. Tudo o mais está guardado no coração. Mas a cristaleira majestosa que a sogra deu de presente ainda compõe a sala, alvo de lindos suspiros e comentários.

    Assim é a vida. Tempo de juntar e tempo de lançar fora. Tempo de rir e tempo de chorar. Tempo de compreender que as lembranças são nossa maior riqueza, sobretudo se a sorte de uma vida bonita foi o mais belo presente de Deus.

    Então, guardemos essa vida no coração. Guardemos os anos 60, a margarida, os festivais de música, as guitarras agudas e os hinos libertários dos nossos ídolos. Com respeito e amor, guardemos.

    Guardemos a pantalona colorida, o chinelo de couro, a blusa de gola rulê canelada e os livros da faculdade. Guardemos o início da vida profissional, o primeiro emprego, o noivado, o casamento, os filhos e a dívida de viver. Honradamente, guardemos no coração.

 

Passará

 

Marisa Bueloni

         Por que choras, passarinho? Por que estás longe do ninho? Ora, linda avezinha, vem aqui ficar na minha. Vamos juntos de passeio, como quem a nada veio. Dá-me tua asa penada, que a longa madrugada será o nosso recreio.

            Tu te calas porque é noite, e eu te acolho com carinho. Porque emites sons tranquilos, não competes com os grilos no teu canto de mansinho. Lua alta se derrama no granito da cozinha. Um luar que vejo torto quando a noite se avizinha.

            Passará a mágoa, o pranto. Passará a dor da espera, como a luz de uma quimera, como sublime acalanto. Vem pra perto, amiguinho. Tu te achegas no meu braço, que será o teu regaço para onde te aninho.

            Passarão todas as horas, passarão todas as dores. E meus olhos nesta espera é uma esfera toda em cores. Por que rimo, passarinho, por que rimo assim à toa? Não te espantes com meus versos, pois a rima nem é boa...

            Reconheço, passarinho, que sou frágil como és. Temos esta natureza de nascer, viver, morrer. Mas se podes, vem comigo, vive sempre ao meu redor. Tua vida pequenina, junto a minha, meu amigo, torna tudo tão melhor!

            Quem me dera, passarinho, quintanares Deus me desse! Para ouvir a voz do vento nas ruazinhas tão nuas. Onde lá no fim do mundo, há dores minhas e tuas. Quem me dera, quintanares! De Quintana a prosa bela, numa noite insone e triste ver estrelas na janela.

            Passará, meu passarinho, esta dor de esperar. Para ver de novo o certo, como o certo há de ser. Para que haja sentido em nascer, viver, morrer. Ou senão, minha avezinha, de que vale o que se vive? O que tenho, o que terei, ou mesmo o que nunca tive?

            Tu tiveste, passarinho, meu jardim de moradia. Vi quando vieste esperto beber água à luz do dia. Pois bebeste desta água que é tão tua e é tão minha. Que me mata a sede e a fome, onde poso de rainha. Sem um cetro, nem coroa, sem um reino pra reinar. Realeza é minha casa, como vida é tua asa, para que possas voar.

            Se me entendes, passarinho, passa aqui sempre que podes. Passarei nas tuas penas o meu lenço ensopado. E enquanto te socorro, tu te apressas e me acodes. Fica assim bem combinado nosso pacto sagrado. Gente e ave se entendendo, num momento abençoado.

            Passará, meu passarinho, esta dor sem medição. Tu não sabes quanto sofro na visual confusão. Quem  deixou assim confusa a minha vista, assim? Ah, vida de tantos brados! Há enredos bem traçados, como amores bem flechados. Ai de mim.

            Vem te despedir, amigo, nesta noite mansa e clara. Faz um frio siberiano, mas meu corpo nem repara. Pois me aquece a esperança e uma lembrança rara. Passará, meu passarinho, toda dor, toda tristeza. E verei teu voo ao longe – que beleza, que beleza!...

 

Sonhar não custa nada

 

Marisa Bueloni

         De sonho em sonho, ela flutua. Não sabe mais que dia é hoje, que horas são, quando é a próxima dose do medicamento, já se cansou de exames e de tudo isso, e acha que envelhecer é maravilhoso, a vida poderia dispensar o remédio amargo de vez em quando.

    De sonho em sonho, aparecem na moldura do tempo a sandália de couro, a pantalona estampada, o colar de riponga, os brincos e pulseiras. Descer a pé a rua Governador, para ir à faculdade no centro, era caminhar nas nuvens. Como num filme, a vida transcorria, as cenas se fechando cheias de mistério.

    De sonho em sonho, remexe nos guardados, abre a caixa com as fotos amadas, outra com alguns postais, guardados zelosamente. De novo, inspeciona as gavetas onde as toalhas lindas estão perfumadas e plenas das digitais, os almoços festivos, o ruído das taças natalinas, brindes e risos.

    De sonho em sonho, aparecem os rostos de uma nitidez encantadora, mas a sépia da saudade a impede de continuar. As lágrimas lhe toldam os olhos. Melhor apagar a visão do passado. Ele costumava dizer: “Sonhar não custa nada”.

    E assim, de sonho em sonho, que é de graça,  atravessa as paredes das casas habitadas, as filhas pequenas, a vida dando seus primeiros passos e o futuro lá na frente, acenando gentil. Ah, tempo implacável, que corrói parte de nossas vidas.

    De sonho em sonho, a vistoria pela casa amada, uma oração para que Deus lhe dê o silêncio tão necessário, sem latidos de cachorros, por favor, Senhor! Prece diária, fervorosa, suplicante! É bom demais sonhar com a paz!

    De sonho em sonho, ela projeta a casinha mil vezes desenhada. Já a aperfeiçoou tanto, melhorou a passagem para a parte íntima, corrigiu janelas e entradas de luz importantes e, depois de tanta correção, agora a planta lhe parece perfeita. Só falta encontrar o terreno no bairro amado e construir. Haverá tempo?

    De sonho em sonho, ela pede tempo a Deus. Para conhecer parte desta felicidade terrena, o gosto de conceber a casa sonhada, no seu conceito de moradia, onde habitar um imóvel se torne algo absolutamente salutar, encantador, humano. Do ponto de vista da arquitetura e na visão benfazeja de morar com amor.

    Mas o sonho não cessa jamais. Se a casa não se concretizar, restará a graça da esperança. Há de haver em algum reino celeste a morada eterna do regozijo, da paz e da alegria infinitas, no etéreo mundo onde o corpo glorioso flutuará pelas alamedas e jardins floridos.

    De sonho em sonho, ela tenta esquecer um amor que, apesar de tudo, aquece seu pobre coração. Por um triz! Foi quase feliz. Mas, tem consciência de que a felicidade completa não existe nesta terra...

 

 

O amor cura e salva

 

Marisa Bueloni

          Um querido amigo escritor afirmou num texto que “o amor é o aconchego mais presente na receita da felicidade. É o ar, a água e o alimento da vida. A alegria e a vontade de viver dependem dele.” Concordo plenamente. Serei uma insistente trovadora do amor, em todas as suas instâncias.

           Penso que amar é algo tão divino e arrebatador, a ponto de não exigir correspondência. O amor basta em si mesmo. Saber-se amando (a algo ou a alguém) é tão profundamente belo e enriquecedor, que se o outro não corresponder ou não souber que é amado, não faz mal. O coração vive da graça espontânea que brota independente da nossa vontade.       

           Amar não deixa ninguém envelhecer. O amor é o antídoto para a suposta velhice, o elixir milagroso da juventude eterna. O amor é o remédio ideal que combate todas as dores, as do corpo e as da alma. É a grande descoberta para os seres “que passam”. E estamos todos de passagem.

           Ah, que o tempo não passe sem que tenhamos amado o necessário e o suficiente. Que a inexorável marcha dos ponteiros não nos encontre apáticos e insensíveis, quando ainda há tempo para dar e receber amor, todo tipo de amor. Amar pode deter a passagem do tempo: esta é a minha teoria. Abraçar o outro, saber expressar o afeto, beijar a barriga da filha que espera um menino, dizer “pai, eu te amo”, “mãe, você é maravilhosa”, fazer um elogio, tudo isso faz parar o tempo.

           É este o tempo precioso, inestimável, digno. O tempo que passamos amando, o tempo gasto no amor. Nada neste mundo  concorrerá com as horas vividas na plenitude desta beleza. O amor é tudo o que precisamos nesta vida. “All you need is love” , diz uma canção dos Beatles.

             Na contagem das lembranças, o passado de cada um é algo bem íntimo, nos fundamentos do coração. Quanto eu amei? Quanto me doei? Quanto abracei, beijei e disse “eu amo você”? Quantas vezes eu soube expressar meu amor, minha fé, minha esperança, não apenas para mim, mas principalmente para o outro?

           Como explicar o nobre sentimento, sobretudo entre homem e mulher? Esta bênção sublime há de ser eternamente celebrada, ainda que o mundo venha a ser habitado por máquinas e robôs. Em alguma placa metálica, num pedaço de fibra ótica, no estilhaço perdido de um chip sobreviverá a memória do amor.

           Que mundo árido, se não existisse o gesto generoso de estender a mão, o abraço caloroso, o beijo, a palavra acolhedora e sábia! De quantos elementos se compõe este sentimento, para que aconteça a bela revolução.

           Amor! É o céu na alma! Delicadíssimo. Cristal puríssimo. Portanto, cuidado. Cuidado ao transportar a preciosa caixa do amor!...

 

 

Pela janela da vida

 

Marisa Bueloni

Vejo o mundo por muitas janelas, sobretudo por meio da internet. Nela viajo distâncias incríveis, conheço lugares paradisíacos diante da tela do computador. Vou selecionando sites, procuro praias desertas e cidades costeiras onde habitar com segurança. Encontrei lugares lindos, tanto mar, tanto mar. E um céu azul de cortar a carne. Cenário de peixes inspirando as janelas interiores.

          Mas, recebo um PPS lindo da Groenlândia e desisto de morar à beira-mar. Apaixonei-me pela paisagem de neve e de sonho lá quase perto do Oceano Glacial Ártico. Mas é preciso coragem para viver em meio a tanto gelo e frio. Brincadeira, não trocaria uma praia linda e deserta por nenhum outro lugar neste mundo. 

          Pela janela da vida, do alto de seis décadas, já vi algumas coisas, guardadas nas retinas impregnadas de sonho. A infância e os quintais, os domingos pelos sítios, os pés de frutas nos quais sempre elegi o galho mais alto de onde avistava a lonjura que me esperava sempre.

          Cada horizonte visto de um rústico mirante era o êxtase da alma pequenina. Alma consciente de sua dignidade para arrancar da vida o que fosse nobre e necessário. Tirar somente a parte que nos cabe, lançando para o derredor um olhar de respeito e afeto.

          Estas coisas lindas foram aprendidas com meus pais. Eles nos ensinaram a usar até o fim o que tínhamos comprado. Não descartar facilmente. Não comprar algo novo só para ter mais um. E um professor de Matemática me deu esta lição: lembrar que as coisas tidas já foram desejadas. Seu Sebastião de números bordados com o giz e muita sabedoria.

          As janelas da vida se abrem para mim todos os dias. Tudo é um acontecimento quando se tem uma chama acesa no peito, a atenção amorosa para o que nos cerca e nos solicita de instante a instante. Podar o jardim, arrumar uma gaveta, escrever um texto. Uma saída de carro, a chegada ao destino agendado, uma parada na Igreja dos Frades para um momento de Adoração e, no final do dia, a aula de Pilates. Que dia! Tudo isso constitui um movimento de riqueza infinita, conectando mente e corpo.

          De volta para casa, um banho quente, o cabelo lavado e perfumado de creme. A cozinha reluz e cheira tão bem. Dá até pena tirar dela este brilho silencioso. Lembro de alguém que, para não sujar a cozinha à noite, comia sempre uma maçã... Bolacha água e sal nem pensar, os farelos poderiam cair no chão.

          Ah, abençoada casa, abençoadas janelas da vida, por onde vemos tudo passar, acontecer. Os amores, as paixões, os sonhos, as esperanças. A sala de jantar que já reuniu os amados. Tantos já partiram, mas deixaram em sua memória as digitais da saudade e do amor.

 

Quando eu crescer... 

 

Marisa Bueloni

Quando eu crescer, quero ser igual à Madre Tereza de Calcutá. Apaixonei-me para sempre por esta religiosa que enfrentou o mundo e as autoridades eclesiásticas para ser quem foi, para construir o Reino aqui na terra, vivendo junto dos mais pobres entre os pobres.

          Assisti, recentemente, ao filme de sua vida e foi algo arrebatador. Aquele fogo na alma nunca a fez desistir, mesmo diante de tantos obstáculos e incompreensões. Nada para si, nem dinheiro, nem honrarias ou glórias. Comparar sua humildade e sua pobreza com os políticos de hoje, tão indecentes, gananciosos, obscenos!...

          Quando eu crescer, quero ser inspirada por pessoas como Mandela, Zilda Arns, Betinho, São Francisco de Assis, Martin Luther King, São Felipe Nery, Madre Cecília do Coração de Maria, e por pessoas como meus queridos pais que lutaram a vida inteira sem jamais se aposentar do trabalho, da doação, do serviço e do amor ao próximo.

          Quando eu crescer, quero ser como a plantinha anônima de qualquer cerrado ou campina, de um abismo ou de um rochedo altíssimo, inalcançável e belo. Florescer, vicejar, oferecer as frágeis pétalas ao sol, ao sabor de cada hora, refrescada pelo vento, banhada pela chuva, cuidada por Aquele que vela por nós. Não valeis mais que passarinhos?

          Quando eu crescer, quero aprender a Bondade, assim com B maiúsculo. Julgamos que somos bons. Não, não somos. Guardamos tanta má vontade e egoísmo em nosso íntimo! Temos de destruir estas montanhas de prepotência e de orgulho que nos enterram todos os dias. E sair para respirar o ar puro da manhã terapêutica.

          Quando eu crescer, quero aprender a escrever direito. Sim, a gente pensa que sabe redigir um texto, mas falhamos aqui e ali e a sintaxe da vida nem sempre sai correta... Quando eu crescer, quero entender de Física Quântica e da mecânica do universo, fascínio eterno. Menina cientista, vasculhando o céu de fora e o céu interior, abismada com os mistérios da Criação. 

           Ah, quando eu crescer, se Deus me der esta graça, quero ser a Tirsa do Cântico dos Cânticos, ornada como as mulheres bíblicas, bela entre as belas, para as Núpcias do Cordeiro. A Noiva nas delícias eternas junto do Senhor, nosso Esposo incansável, Aquele que nos corteja sem cessar.

 Quando eu crescer, quero ser como aquela estrela que vejo da minha janela, ao anoitecer. Deve ser a Alva que precede a Aurora. Ela me infunde uma esperança nova, um infinito sentimento de amor e de bondade. A estrela brilha distante, como distante está o meu coração.

 Quando eu crescer, quero voltar a ser a criança que fui um dia. Passa, passa, bom barqueiro, e leva contigo as mágoas dos anos e das saudades...

 

 

Daria um bom filme? 

 

Marisa Bueloni

Está muito em moda delatar. Delatar quer dizer denunciar, revelar (crime ou delito), acusar.  A história dos delatores nunca é muito boa, mas agora a delação ganhou prestígio em nosso país, pois, no momento político, quem delata não só tem a pena diminuída, mas ainda goza o direito de cumpri-la nas mansões praianas ou em casas e apartamentos de metros quadrados a perder de vista.

Ser delator tem sido algo muito promissor. E ainda vem coisa pela frente. Estamos estarrecidos com o desenrolar dos fatos. Em plena Lava Jato, políticos de envergadura continuam praticando crimes. É uma desfaçatez vergonhosa. Nosso assombro tenta recusar o escabroso volume de informações.

E tem as mulheres dos políticos, as cenas mais inacreditáveis, as caras-de-pau desta trágica história brasileira, as supostas madames em excesso, num tempo em que ser simplesmente madame ficou tão fora de moda. A que gastou dinheiro de monte, achando a vida bela, sem nunca se preocupar com a origem do mesmo. Meu marido pagava e pronto. Tem a outra, que resolveu revelar a conta do e-mail junto com a presidenta. Onde já se viu isso? É de abalar a República!

Tem a senhora Batista, com ares ainda de senhorita, que dá uma entrevista expondo a vida luxuosíssima, olha, vivo assim, dá pra reformar a casa sempre, viajar, ter empregados, chego em casa e meu carro está abastecido, não sei quanto custa o litro da gasolina,  eu podia comprar uma bolsa por dia, mas não faço isso. Tadinha. Compra! E era jornalista, dividia a bancada com o Boechat, na Band, até pouco tempo. Uma alienação de dar pena. Não, de dar engulhos, raiva, ódio!

E quanto às propinas, ninguém mais pede 100 mil, 200 mil, 500 mil. É tudo na base dos milhões. Vai logo pedindo dois milhões, não seja bobo. Todo brasileiro já sabe como pedir propina neste país. Quanto é? Uns cinco milhões, tá bom. Simples assim. Tem quem pague. E depois cobra o preço lá na frente. Entrega tudo. Dá uma banana pro Brasil e foge para os Esteites da vida.

A história dos irmãos Batista é algo que escapa​​​​ à nossa vã compreensão. A gente lê, lê, lê e continua incrédulo. Riquíssimos, donos de uma fortuna incalculável, vão sair dessa rindo da nossa cara. Consta que se beneficiaram de bancos estatais, receberam dinheiro a rodo. Cineastas, quem será o primeiro a rodar o filme “Os irmãos Batista”?

Vivemos numa democracia, e isso não tem ajudado muito. A alma da nação sangra e a brava gente brasileira está confusa. Falta aqui uma política do bem. 

 

De onde vem? 

 

Marisa Bueloni

   Há tardes em que sou capaz de ver o invisível. Não sei o que é, nem de onde vem. Apenas aparece na minha frente como algo que flui, escapa pelo ar, volátil matéria do nada. Enfrento abismada a beleza do momento, tão efêmero e tão misterioso.

   Não dá tempo de olhar para ele, já sumiu. Não se fixa nem por um átimo, não se pode imaginar o que seja, some da vista tão rápido quanto apareceu. Dirigindo meu carro, penso em parar, estacionar em algum lugar seguro para assimilar o que acabou de acontecer.

   É como se fosse uma graça divina tentando fazer contato, a qualquer hora do dia ou da noite. Logo após a fugaz visão, assalta-me a certeza absoluta de todas as coisas, da origem do universo à nossa antiga ancestralidade. Vejo lá atrás seres que representam a nossa estirpe e tudo se apaga num piscar de olhos.

   Ando ouvindo um som suavíssimo no entardecer do dia. Bem naquela sublime passagem em que os desmaiados raios do sol entregam-nos para a noite. Algo soa delicadíssimo, enquanto quero pegar com as mãos as últimas cores do céu. Aprisiono em meu peito a doce poesia da hora que se acaba.

   Tudo se acaba, penso tristíssima. Amores começam e terminam, às vezes sem ao menos um adeus. Acabam de forma abrupta, brutal e sem palavras. Então, repito como na canção: o que fazer, se eu tenho só palavras para te conquistar?

   Não tenho mais nada, meu amor, além das palavras. E quanto a elas, não sei de onde vêm. Olha que vírgula mais bonita a frase pediu agora. Se não colocar a vírgula, a frase sobrevive. Para que uma sentença gramatical tenha dignidade, é necessário clareza e limpidez. A vida é assim: afirmação, tenacidade, garra e luta. E que ninguém pense em desistir dela.

   De onde vêm as nossas razões, os nossos motivos? As orações que rezamos, desfiando as contas do nosso terço amado? De onde vem a fé, os poemas, os desejos? De algum secreto lugar da nossa alma pequenina, enquanto lá fora as frases e as palavras não têm fim. Um amor tem fim. Uma saudade não. Diz a letra de uma canção lindíssima: “Tristeza não tem fim / felicidade sim”.

   O coração deseja filosofar, retomando aos poucos o tema da crônica: de onde vem a súbita visão do invisível? De onde vem a luz fugidia e veloz, sem dar tempo de conhecê-la? Seria possível tocar seu substrato, a flor da sua essência? Nem estacionando o carro, nem fechando os olhos, em momento algum a visão se completa. Trata-se de um fragmento, uma parte de um todo que não se revela. Um véu que se ergue muito timidamente, só uma pontinha dele.

   Somos feitos de um sopro divinal que nos abraça sem cessar. Ouso afirmar que somos feitos de sonhos e de estrelas. E dos poemas de amor.

 

Nem mais, nem menos 

 

Marisa Bueloni

   Em todos os momentos da vida, bom é manter o equilíbrio. Se possível. Minha mãe batia nesta bendita tecla, que tínhamos de ser ponderados em tudo, apontando exatamente o ponto crucial de cada situação. Amava os ditos de minha mãe, linda pessoa de pouco estudo e muita sabedoria.

 

    Tenho um poema assim: “Nem tanto ao mar/ nem tanto a terra / E na busca do meio-termo/ Quanto se erra...”. Sim, cometemos muitos erros e, se não podem ser apagados, aprendamos com eles. Tiremos deles as necessárias lições. Mas é constrangedor para nós mesmos, algumas vezes, notar que repetimos novos deslizes ao longo da vida.

 

    Uma palavra bem dita é uma graça abençoada. A boa palavra ilumina, acalma a tempestade ao redor, restitui o ânimo e a coragem a quem deles precisa. Mas uma frase impensada ou dita no calor da contenda pode resultar numa tragédia sem fim.

 

    Uma de minhas irmãs, a que herdou a sabedoria de minha mãe, costuma dizer: “a gente vai, a gente volta”, quando se refere a tomar partido numa determinada questão, numa situação difícil de ser julgada ou compreendida. Mas o que resta de mais positivo em nossos vaticínios é a moderação, aquela filosofia de não esticar demais a corda, não forçar o ponto de tensão, para que não venha a se romper. E rompendo-se, leve com ela algo precioso demais. Um amor. Ou uma amizade, por exemplo.

 

     Tristeza sem nome é perder um amor, ou perder o amigo devido a um desatino, pela falta de esclarecer um problema, uma dúvida. Por questões ideológicas, estando o amigo em lado oposto, politicamente. Vimos como o país se dividiu no recente episódio do impeachment da presidente Dilma. Amizades de anos se romperam, algumas pessoas tomaram atitudes drásticas, chegando a eliminar de seus contatos nas mídias sociais quem estava “do outro lado”.

 

    Nem mais, nem menos. A medida certa. E qual será ela? Cada um sabe, no seu íntimo, onde se encontra. Toda pessoa equilibrada conhece a fragilidade de uma situação, onde é que temos de ir com calma, ponderação, comedimento. Ninguém jamais lamentará o fato de ter sido cauteloso, buscando justamente não ultrapassar a linha desta abençoada harmonia.

 

    Discernimento e bom senso valem para tudo e para todos, em qualquer tempo e lugar. Para quem precisou chamar a polícia uma vez na vida. Para quem se senta à mesa e para os que apreciam um bom vinho. A sobriedade jamais será repreendida. Uma pessoa de bem conhece o valor da imagem de integridade.

 

    Nem mais, nem menos. A medida correta, precisa. O gesto pensado, refletido. Peço a Deus sabedoria e a lucidez necessária para encontrar o delicado meio-termo. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra...

 

No Céu não tem fogão 

 

Marisa Bueloni

   Conheço uma pessoa maravilhosa, que cozinha todos os dias, o almoço e também o jantar. Faz sobremesas, assa bolos divinos e, embora esteja há algumas décadas com a mão na massa, não reclama de nada, está sempre feliz, pondo na comida o tempero do amor, do carinho e da bondade. Sua família agradece.

Mas como tudo tem um limite nesta vida, cozinhar por anos a fio também cansa. E um dia, eu a ouvi dizer: “Olha, se no céu tiver fogão, não é o céu...”. Ah, minha querida, eu concordo! Sim, no céu não pode ter fogão e, tampouco, aspirador de pó, rodos, baldes, panos de chão, casa para limpar, ou não será o lugar do repouso eterno.

Muitos de nós não queremos fogão no céu. Até porque nossa cota de cozinhar já foi honrosamente cumprida. E então, desejaremos estender nossas mãos e apanhar os frutos do Paraíso. Caminhar por uma alameda de sonho e, de repente, avistar um jardim com mesas postas e finíssimos pratos a nossa espera.

Alguém rebateu que seremos puro espírito e não sentiremos fome. Que pena! Quando falei da túnica alvíssima e nupcial (é simbólica, eu sei), para participar do Banquete do Cordeiro, fui advertida de que espíritos não precisam de roupa. Mas eu fico com a visão de quem teve uma EQM (Experiência de Quase Morte) e viu seus amados do outro lado, andando com longas vestes brancas, em meio a flores que não existem em nosso mundo.

Para quem lavou muita roupa nesta vida, a visão de um tanque no céu será desoladora. Quem foi varredor de rua pulará de alegria, ao ver longas avenidas celestes cheias de folhas para varrer? Quem trabalhou na enxada de sol a sol, exultará se encontrar um campo extenso para cultivar? Bem, dependendo da alma, fará tudo com grande gosto e presteza. Afinal, está no céu!

Minha querida, se no céu houver fogão, será para preparar algo bem fácil e simples, na etérea cozinha dos anjos. Não será obrigação diária, lá não existe tempo. Quando sonho com as “moradas” que o Senhor preparou para os santos, imagino amplas casas que se mantêm sozinhas, com janelas baixas e cortinas fluidas. Luz, brisa, paz e descanso eternos! Para louvar o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis.

O céu deve ser lugar de inimaginável beleza e grandes espaços para a alma habitar. O dia eterno, a plena visão. Felicidade que jamais alguém conheceu na terra.

Então, Senhor, vede que ela não deseja encontrar fogão no céu. Acho que eu também não. Bom será que avistemos redes, varandas sem fim, imensos sofás e almofadas, tapetes de florinhas do campo, banquetes mágicos, uma bebida revigorante para o lanche e um pãozinho feito por mãos angélicas.

Será que no céu tem café?

 

A nós descei, divina luz 

 

Marisa Bueloni

   Tenho por norma de vida trilhar na sinceridade e no reto caminho. Se deles me afastei em alguns períodos, hoje me penitencio e entendo que temos esta dicotomia a nos reger. Não somos totalmente bons e nem totalmente maus. Nem anjos e nem demônios, mas criaturas frágeis, equilibrando-se na luta entre o Bem e o Mal.

   Quem treinou seu espírito, abrindo-se à Luz Maior, identifica os sinais de uma batalha feroz. Estaremos mais seguros se pudermos manter acesa aquela tocha que clareia a escuridão. Que nunca se apague em nós o fogo da inteligência, da sabedoria e do amor.

   A nós descei, divina luz. Que esteja permanentemente aceso o brilho da fé, da esperança e da coragem. Ousar com prudência, não importa em que tempo ou idade, é sempre salutar e revigorante. Prezo a ousadia, quero sentir-me viva e com o coração receptivo às coisas novas, ao debate das ideias, ao conhecimento. O saber me atrai de forma quase dolorosa. Aprender algo novo me faz sofrer. Minha alma se rende ante a grandeza das galáxias e das campinas, mares e ares, universo em flor.

   Não se apague jamais esta luz bendita que nos guia dia e noite, sem cessar. Este facho precioso a nos indicar o rumo da nossa casa, do nosso trabalho, da nossa vida. Que atitude tomar, como agir, como proceder em determinadas situações, onde precisamos de razão, sentimento e espírito crítico.

   Permaneça viva em nós a luz da acuidade mental, do equilíbrio e da prontidão. Guardiões e sentinelas de um tempo sombrio. Feliz de quem se sente conectado com a divina luz plena de revelações. Exista em nós a alegria de viver cada momento com determinação e verdadeiro empenho.

   Perfeita alegria, meu caro frei Leão. Perfeita alegria. Se puderes perdoar. Felicidade do perdão concedido, pedido, praticado. Felicidade do dever cumprido, da casa arrumada ao coração cheio de paz, descansando na reta intenção. Convicção de ter dado o melhor de nós, em tudo e a todos, com a certeza de que ainda há muito a ser feito.

   Não, o sonho não acabou. Que não se apague a nossa memória, as palavras, as paixões, os sonhos. Sejam iluminados os nossos desejos, as mais belas e íntimas inspirações, serenas ou loucas, tanto faz. Cada um conhece a própria história e carrega em si a capacidade de ser feliz.

   Não se apague jamais em nós a vontade de abraçar, de dizer “eu amo você”, de estender nossas mãos para acolher o amigo distante. Chorar com os que choram e rir com os que riem.

   Luz para combater a baleia azul, luz para combater as trevas. Para nos levar e nos trazer sãos e salvos à porta da nossa casa. Deus nos dê a necessária lucidez e que a Sua Palavra seja lâmpada para os nossos pés.

 

 

As pedras do caminho 

 

Marisa Bueloni

   Todos já passamos por elas, as pedras difíceis da caminhada. Há uma frase assim: “Com as pedras que me atiram construirei um castelo”. Um bom aproveitamento dos projéteis. Vingançazinha benigna, de ótimo astral.

   Mas me refiro aos percalços, aos obstáculos, às pedras duras que temos de transpor, feito rochas que nos impedem a marcha rumo ao supremo destino, seja ele qual for. Todos nós temos metas, sonhos, projetos. Emagrecer, parar de fumar, conhecer Israel, trocar de carro, ter tempo pra ouvir música, comprar uma casa no bairro amado, pagar as dívidas. Ouvi na tevê que existem 40 milhões de brasileiros com os nomes no Serasa. Sintoma de um país em extrema crise?

   Enfim, que barreiras duras temos de ultrapassar, na trilha diária, na luta e na dor. Alguns possuem força suficiente para retirá-las com as próprias mãos e manter o passo. Outros precisam de ajuda, vinda do céu, vinda da terra.

   Ah, quantos bons Cireneus encontramos ao longo da estrada! Que grande graça é contar com o apoio de gente amiga, almas generosas. Como é bom repetir o gesto, fazer nossa parte, oferecer as mãos e o coração a quem passa por alguma necessidade. Não há sentimento mais belo do que ter feito o bem, ter prestado auxílio.

   É fatal: iremos encontrar nossas pedras necessárias ao longo da vida. Sábio é aquele que as contorna, encontra um atalho perfeito e retoma seu rumo. Mais sábio, dizem, é quem consegue se elevar acima da pedra e, da altura dela, vislumbrar tudo a sua volta. Até mesmo a resolução dos problemas e dificuldades.

   Quem já tentou subir em cima de sua pedra sabe como é. Para começar, precisa de equilíbrio. Uma queda pode ser dolorosa demais. Alguém me disse que conseguiu a proeza, mas nada avistou lá de cima. Desiludiu-se e desceu... Eu não. No dia em que eu puder subir em minha própria pedra, usarei um binóculo de grande alcance, ou um telescópio astronômico, para enxergar o infinito.

   Há de haver uma gentil poesia para a nossa livre passagem neste vasto mundo. Quando era estudante, meu trauma era a Matemática. Ah, pedra dura de carregar! Depois, Física e Química. Mas fui passando estas matérias, embora pouco delas passasse por mim.

   Somente mais tarde se compreende a beleza dos números e cálculos, o trabalho dos físicos e seus estudos sobre as leis cósmicas e a estética do universo. Com o tempo, vemos sentido e harmonia no Teorema de Pitágoras e seu enunciado místico.

    As pedras do caminho podem ser contornadas com o aprofundamento deste belo Teorema e sua ressonância em nossa vida. O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Lição para o resto da vida.

 

A vida não espera

 

Marisa Bueloni

   O que tenhamos de fazer, façamos hoje. Vivamos o “agora”, o momento presente, sem desperdiçar um minuto sequer. Precioso é o tempo que nos rege. A vida urge.

   É noite. Abro a porta da sala e vou até a rua. Madrugada, hora de ver anjos noturnos vigiando o casario. Nem sempre aparecem. Mas vigio e rezo. Algo vai acontecer. E acontece.

   É dia. Ao abrir todas as janelas, sinto a abençoada aragem entrando pela casa. Dia de trocar a roupa de cama. Tirar da máquina de lavar e deixar a alma pendurada no varal.

   Um poeta disse que antigamente havia galos, noites e quintais. Pois insisto que haja ainda. Não quero perder uma só destas relíquias sublimes. Ouvir um galo cantar me reporta à infância e às férias passadas no sítio dos tios. Lá morava a doçura do mundo, mas eu não sabia.

   Hoje há tanta agitação, tantas urgências. As pessoas mal se ouvem. Agora, pela moderna tecnologia, conversamos teclando, não ouvimos mais a voz do outro. Faz falta aquela fonética troca de afeto. Seja lá como for, junto com nossa ansiedade, o tempo se acomoda no banco de trás do nosso carro e diz: em frente!

   Vou sempre pela avenida do sonho, onde posso sonhar com mais largueza, apesar das placas de limite de velocidade entre 40 e 60 km. Nunca ultrapasso, sou tão obediente, acato as leis, mas já recebi duas multas. Bem eu que respeito e amo o trânsito. Andei a 45? Tenho vontade de não pagar, senhores.

   A vida não espera. Então, li num cartaz assim: “Ame agora. Demonstre agora. Fale agora. Abrace agora. Responda agora. A vida é um sopro”. Sim, por que entalar na garganta aquela declaração de amor? Talvez saiamos machucados mortalmente. Mesmo que o outro não corresponda. Paciência. Pelo menos não vamos morrer nos roendo por dentro.

   Por que não desenterrar do fundo do coração aquele segredo, partilhando-o com alguém de nossa confiança e que nos fará respirar melhor? Por que não pedir o perdão necessário? Eu sei reconhecer quando erro e sei pedir perdão. Também sei perdoar, graças a Deus.

   Não espere para se reconciliar com alguém da sua família, ou para falar junto ao caixão. Estenda a mão, demonstre amizade, respeito, consideração. Por mínimo que seja o gesto irá facilitar todo o resto.

   A vida não espera. Nós temos de correr atrás dela feito uns loucos, porque a Terra continuará girando em torno do Sol. Até quando? Não sei. Quanto mais leio, estudo e pesquiso, mais sou obrigada a admitir minha ignorância. E a vastidão do universo me deslumbra sempre que penetro nestes mistérios.

   Então, ó Deus, se posso partir amanhã, me perdoe a ousadia. Não devemos nos calar, mas declarar nosso sentimento, nosso amor. Amo você.

 

Bendito sonho

 

Marisa Bueloni

   Sonho com um paraíso. Beira-mar, uma praia deserta, casinha com varanda, rede, violão e estrelas profundas no céu. Viver de peixe, frutas, roupas leves, chinelo de dedo, brisa e fé. Ter o suficiente, o necessário, o básico dos básicos. Não falte um creme para o corpo, óleo para os cabelos, hidratante para a face, brinco, batom e saúde. Uma saia indiana longuinha para a missa de domingo.

        Ando sonhando com isso ultimamente, ouço o chamado de um mar distante que me quer perto dele. Mas, se irei até lá, não sei. Enquanto não vou, devaneio. Sou movida a sonho, já confessei aqui despudoradamente.

        Sonho com uma vida cada vez mais simples, mais descomplicada. Será? Pé no chão, junto da natureza. À noite, conciliando o sono, rezando antes de dormir, é fatal fantasiar um pouco.

        Estou lá. A praia é deserta, mas nem tanto. Há algumas casas próximas, vizinhos bons, gente educada que dá tchau de longe, alguém até joga um beijo. Há privacidade, respeito e gentileza.

        A areia da praia é branca e fina, um ouro que piso em silêncio e devoção. Os pés afundam naquela maciez benfazeja e fundeio meu coração no porto azul da felicidade.

        Estou lá, ando pelos lugares vadiando o quanto posso, haurindo cada momento, sob o céu que nos protege. Vaguear o pensamento, a aragem da maresia transpassando o corpo e a alma, em direção ao atlântico sentimento de amor.

        Passa um barco pesqueiro, que mais tarde virá trazer o peixe fresco, para fazer com tomate e cebola em rodelas, pimentão de três cores, cheiro-verde, azeitonas, alcaparras. Termina com batatas cobrindo tudo, cortadas grossas e temperadas com um pouco de sal rosa do Himalaia. Está pronta a peixada. Quem gostar pode pôr leite de coco.

        Estou lá. O mar escreve na areia um poema de palavras devoradoras, de metáforas abissais. Leio em êxtase os versos oceânicos da vida em prantos.

        Chora meu peito errante. Chora minha alma saudosa do que não vivi. Saudade de um passado que não tive, do que não fiz e nunca farei. Faltou tempo? Não. Faltou a ousadia que destaca alguém nesta vida, coragem, valentia, força, determinação. 

         Belo é o que se conquista com garra e luta, assim como quem trabalha arduamente para pôr na mesa o pão de cada dia. Êxito alcançado com horas abençoadas de estudo, de renúncia aos prazeres, buscando primeiro o dever, a obrigação.

        Mas estou lá, na beleza misteriosa das conchas e das pedras. Depois das ocupações do dia, repousar numa cama doce, e dormir ouvindo a música marinha cujo canto não cessa.

        Estou lá. Enquanto caminho pela praia, na manhã de todas as manhãs, peixes ovulam debaixo d´água nas profundezas que jamais desbravarei, porque sou térrea, terrena e solar.

        Bendito sonho. Como viver sem ele? Embala meu sono todas as noites. Peço ao meu Anjo da Guarda que vele comigo. Confessou-me que também sonha e me acompanhará na extrema aventura, se um dia a lucidez permitir. Meu Anjo promete ser meu par fiel nesta derradeira morada, âncora final.

        Estou lá. Moro no sonho. Durmo e acordo nele. Vivo com ele no coração. Quero morrer no sonho e depois seja o que Deus quiser.

 

A Todas as Mulheres

 

Marisa Bueloni

   Esta é uma semana especial: no dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Não posso deixar passar em branco, quero abrir uma garrafa de festas e brindar. São tantas as mulheres dignas deste brinde, mas quero escrever a mulher envolta em poesia e inquietação. À maneira da vida.

    A mulher, em puro enlevo, diz: há quatro coisas a mais em mim do que há em ti. Dois seios, dois ovários, quatro calvários. E se atinges da vida a matriz, fico por nove meses ostentando a cicatriz. Os dois ovários são cúmplices do amor e acolhem o ser que me sugará os seios quando a luz for vista.

    São quatro coisas a mais e não são opcionais.  Porque sou fêmea e pacifista. Não trago os seios como quem carrega faixas de protesto, mas amamento em favor da vida. São quatro, mas uma só a ferida. Dos ovários que não tens ao simulacro de seios que em teu peito se desenha, o retrato biológico de uma senha: és homem. Mas, quatro calvários, dois seios e dois ovários, não se têm porque se quer. Na força bruta do fato, o ultimato: sou mulher.

    Não. Não são calvários os fatores da condição feminina, mas bens preciosos na evolução da vida. Porque é possível fazer um acerto de contas. Tu guardas as meias, eu arrumo a cama. Eu faço o suco de laranja, dobras teu pijama. Pões a mesa e eu faço o café. Eu lavo a louça, tu guardas tudo em seus lugares e, juntos, vivemos a fé.

    Mas as mulheres são seres que, quando não abatidas a tiros, deixam-se matar pelo domínio daqueles que as executam no silêncio perigoso. Na opressão, no jugo, no medo, sub-repticiamente, inocentemente, paulatinamente, socialmente.

    Tem Georgina, que é morena, está barriguda, espera um filho. Num pé-de-vento, a poeira se levanta do asfalto. Apóia-se na vassoura, vira o rosto, tosse o pó. “Qual o que, dona, a gente não sonha com vida de varredora; nunca vou virar doutora, mas um dia inda me arranjo”. E num momento de graça, Deus vem do céu e a abraça: sabe que ela espera um anjo.

    Tem Eufrosina, sem dentes, sorriso frouxo. Palavras como farofa, fofa e felicidade saem sopradas, sibilantes e atônitas de sua boca. Quase sempre, volta para casa frustrada, fanha, faminta. Saúde fraca, sem forças, vai tocando a vida banguela, debruçando seu sorriso na janela.

    No estoque de lembranças, dona Júlia era sábia com seu lápis de ponta vermelha, no primeiro ano da vida escolar. Seu batom, seu perfume, seu anel de professora. O tempo era tabuada pura, ó tempo feliz! O livro, uma doçura de letras que iam se escoando pelo pó do giz.

    Neste estoque de saudades, eu deveria ter, num refil, para quando acabasse e eu precisasse do teu perfil. Uma foto que fosse do teu sorriso, uma camisa xadrez, um cinto de couro, abotoadura de ouro, papel de seda dobrado, pétala de rosa amassada dentro de um livro. Estas coisas tolas e admiráveis que fazem o delírio de uma mulher numa tarde de chuva.

    São tantas as mulheres dignas do brinde. Para celebrar, bastam as palavras. E a vida, este poema respiratório, louva a mulher todos os dias. Assim, transcrevo de mim: passamos da Idade Média. Mulheres pensam.

 

De outros carnavais...

 

Marisa Bueloni

   Ah, quisera eu me revestir da glória dos carnavais passados e arrastar pelo salão do tempo uma fantasia antiga. Uma saia rodada de mágoa, esta que a todos nos machuca de alguma forma e jeito.

        Quisera eu cantar as marchinhas de outrora, dos primeiros bailes juvenis, regados a confete e serpentina. Saudades das letras engraçadas, maliciosas, gaiatas, românticas. Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é Carnaval. Era uma marcha-rancho que a orquestra tocava para dar uma pausa, um descanso nas pernas dos foliões. Todos meneavam o corpo lentamente, esperando pelo frevo “Vassourinha”. Trepidante.

        Quisera eu, por alguns momentos, entrar numa máquina do tempo. Ala la ô ô ô ô ô ô ô. Mas que calô ô ô ô ô ô or! E cantando a gente atravessava o deserto do Saara. Já visitamos desertos em nossos sonhos tecidos de esperança. Se a canoa não virá, olê, olê, olá, eu chego lá. Rema, rema, rema, remador. Quero ver depressa o meu amor.

        Por onde anda o amor? Quem sabe, resolveu usar aquela máscara dourada e sedutora, para atacar incautos corações. Ou saiu atrás do trio elétrico. Só não vai quem já morreu.  Ainda não morri.  Permita Deus que eu não morra sem ter visto a beleza. Sem ter contemplado o mistério.          

        E a estrela-d´alva no céu desponta. Eu a vejo todas as noites, a primeira que aparece. Digo a um amigo querido que é um sinal para nós. Ela representa a Alva que precede a Aurora. Quem lê, entenda. Não combina ser escatológico no chamado tríduo momesco? Pois acabo de fundar o Bloco do Apocalipse. Pronto. Aceito sócios, foliões interessados em saber como tudo acabará e dou carteirinha de afiliação. Sem taxa de inscrição e sem mensalidade. Eu quero é botar meu bloco na rua.

        Então, as marchinhas. Com essa crise danada rondando a vida de todos nós, não custa ser criativo, corajoso e aproveitar o momento para pedir: ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí.

        Ó, jardineira, por que estás tão triste?  Não fazes ideia, meu anjo. Tristeza  não tem fim, felicidade sim. Foi a camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu. Mas a graça era cantar eu mato, eu mato, quem roubou minha cueca pra fazer pano de prato.

        Menina vai, com jeito vai, senão um dia, a casa cai. Ah, menina, isso vale para qualquer idade, em qualquer situação. Tem de ir com jeito, senhores, ou a casa cai. Desmorona fragorosamente. A casa caiu para muita gente, num lava-jato da vida... Da casa, passaram para o presídio. O país a tudo assiste boquiaberto. Mas não é que estão fazendo justiça?

        Quisera eu encontrar numa curva do caminho aquele Pierrô apaixonado, que vivia só cantando. Que eu faça par com ele, e nos sentemos juntos numa mesa de bar para celebrar o amor, a saudade, a vida. Esta coisa danada de bonita, que só enfeita a gente na saúde. Ó que fortes e belos temos de ser, se almejamos enfrentar a longevidade.

        Feliz mesmo é a Chiquita Bacana lá da Martinica. A gente se preocupa tanto e ela se veste com uma casca de banana nanica...

 

 

Até que a chama se apague

 

Marisa Bueloni

   Viver é um ato de heroísmo, vou repetir sempre. Num dia estamos bem, dispostos e animados, prontos para podar o jardim, arrumar armários e cozinhar. No outro, sem motivo algum, acordamos cansados, com dores no corpo, debilitados. Ontem, seríamos capazes de subir uma montanha; hoje, um abatimento mortal nos prostra o corpo e a alma.

          Não entendemos que distúrbio é esse a nos jogar nesta alternância, sem uma causa conhecida. Nos dias de alto-astral, temos de aproveitar e fazer o impensável, pois no dia seguinte poderemos não estar com o mesmo pique.

          E assim será até que a chama se apague.  Dia após dia, cumprindo a vida e suas solicitações, de forma amorosa, gentil e generosa. Ou de modo um tanto contrariado, sem vontade de fazer determinadas coisas, mas fazendo-as por obrigação, dever e necessidade.

          Lemos por aí que a maioria de nós apenas “existe”, e poucos “vivem”. Sim, existir é diferente de viver. Uma pedra existe e é inanimada. Uma pedra não possui alma, não reage, não sente. Os seres vivos são sensíveis ao ambiente em que vivem. Nós, seres humanos, carregamos a capacidade vital e biológica de sentir, de reagir, de amar, de construir uma vida cheia de interesses e descobertas.

          De todas as descobertas, a mais bela é o amor. Descobrir o amor, e que este amor é dirigido a alguém ou a alguma área de nosso interesse é algo sublime. Ter paixão pelo que se faz: eis a fórmula da felicidade nesta terra. Amar e ser amado: a mais maravilhosa das dádivas concedidas a uma pessoa neste mundo.

          E assim será até que a chama se apague. Uma multidão procurando pelo amor, sem o encontrar; e alguns privilegiados dando de cara com ele, sem a sofreguidão da procura. A vida tem suas sinuosidades, seus mistérios e surpresas. Mas tem também as agruras, os dissabores e, sobretudo, os desencontros.

          Triste é desencontrar-se nesta vida. Principalmente depois que se encontrou. Triste é perder a mão da pessoa amada no meio do baile, quando a luz se apagou e a vista escureceu. Nada pode ser mais sombrio do que a tristeza de quem perdeu o amor.

          Vinícius de Moraes disse que “o câncer é a tristeza das células”. Sim, quando nossas células se entristecem demais, é perigoso. Ninguém deveria sofrer desta tristeza cruel, a ponto de adoecer. Um luto pode ser fatal. Uma perda importante pode matar uma pessoa saudável, de tanto desgosto e amargura.

          E até que a chama se apague será assim. Perdas e ganhos. Vitórias e fracassos. Entusiasmo e incerteza. Saúde e doença. Dias de muita energia e vontade, mesclados com momentos de prostração e desesperança.

          Minha mãe repetia sem cessar o tal “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe”. Citei corretamente? Note que os substantivos “bem” e “mal” podem ser invertidos e a frase continua com seu insofismável sentido.

          Até que a chama se apague viveremos entre a cruz e a espada, entre a rosa e o espinho. Deus nos dê o devido discernimento, a preciosa lucidez para escolher e decidir. Para a chama se apagar com dignidade, doçura e poesia.

 

O cheiro da vida

 

Marisa Bueloni

   Desde sempre, me ligo em cheiros. Tocam-me a alma profundamente. Um perfume marcante me faz seguir a pessoa, abordá-la e perguntar que marca é aquela, onde comprou. Uma vez, na igreja, sentou-se perto de mim uma moça de cabelos lavados. Ela tinha todo o jeito de quem acabara de tomar banho. Havia nela dois cheiros que se misturavam harmoniosamente: o do sabonete e o do perfume.

               Louvando aos céus, assisti à missa sentindo aquele aroma suave e penetrante.  Era algo sublime. Terminado o santo ofício, ela passou por mim, para deixar o folheto na caixa e eu não resisti: moça, que perfume você está usando? Ela disse o nome, mas eu esqueci. Não tinha caneta na hora pra marcar e acabei esquecendo.

               Cheiros me comovem. Aromas entram na minha alma de forma arrebatadora, como o perfume de rosas, por exemplo.  Amo o cheiro de rosas! Os diferentes odores chegam até mim e cada um, na sua essência e particularidade, causa-me um tipo de reação.  Identifico logo se o gás está vazando, se tem comida queimando no fogão, se há algo no ar que incomoda ou dá prazer.

                A par desta sensibilidade em relação aos aromas, sou alérgica a certos perfumes que me dão dor de cabeça. Que tristeza ir ao cinema, à missa, a algum evento desse tipo, quando se acomoda próximo de nós alguém exalando algo extremamente enjoativo ou adocicado. Se há como mudar de lugar, mudemos.

               O cheiro do nosso carro, depois de mandar lavar. Ou higienizar o ar condicionado. O cheiro do nosso cabelo, ao sair do banho, perfumado de creme. O cheiro da nossa pele, depois de passar o hidratante de ameixa. O cheiro do mar. O cheiro do café. O cheiro do incenso.

               Ah, quando vai chegando a hora do almoço, é um deleite a comida sendo feita em casas próximas da minha.  O cheiro de alho e cebola refogados, certamente para o abençoado arroz e feijão de cada dia, invade os ares amorosamente. Carnes assadas também exalam um aroma maravilhoso no ar. Mas nada se compara aos assados natalinos. O cheiro deles me faz levitar.

               Cheiro da casa limpa, depois da faxina. Não é extasiante? Aquele cheirinho bom do desinfetante no banheiro, o perfume do que se usou para passar no chão, para limpar a cozinha. E o cheiro da roupa recolhida do varal, que secou na manhã inundada de sol? Os lençóis dobrados e guardados com carinho. E depois, quando estendemos na nossa cama, o perfume escapando pelas fronhas? Ah, quanta gratidão tenho por tudo isso.

               O cheiro da pessoa amada!... Que lembranças temos dela? Sim, o cheiro do corpo, cheiro da roupa, cheiro do perfume usado a vida toda. Uma mistura inesquecível, amálgama impregnado de infinita saudade.

               Mas há um cheiro inconfundível: o cheiro da vida. Aquele aroma sentido em cada momento na casa onde moramos. Destaco alguns: o das nossas toalhas de mesa, do armário onde guardamos o pão, as bolachas e as guloseimas. O cheiro do sabonete preferido e o cheiro que emana das gavetas arrumadas.

               Peço a Deus que eu seja uma velhinha bem cuidada e cheirosa. Que eu tenha sempre um perfume de rosas exalando de minhas mãos...

 

Enquanto chove...

 

Marisa Bueloni

   Quando esta crônica for publicada, o céu pode estar azul celeste, claro e límpido. Mas escrevo ouvindo o barulho da chuva, os trovões sugerindo o ruidoso caos em toda parte. Estas águas de janeiro parecem limpar e varrer a sujeira do mundo...

 

    Chover é verbo intransitivo, de poucos modos de conjugação, está visto. Não há como dizer “eu chovo, tu choves, ele chove”. Mas há frases lindas como “chovia a cântaros naquela noite”.

 

    A chuva é profundamente poética para quem a aprecia e entende a natureza das coisas. Quando morava no campo, amava o cheiro de terra molhada, a grama úmida, as plantas pingando em suas folhas e palmas, o céu estrelado de novo, os grilos e rãs agradecendo.

 

    Uma vez, escrevi uma crônica sobre como aproveitar um dia de chuva dentro de casa. Da aflição que bate no peito, se temos uma tarde só para nós e começa a chover. Fazer um chá? Oh, sim, ou passar um café fresco. Pão com manteiga, o lanche dos deuses.

 

    Pegar aquele livro maravilhoso, deitar no sofá e continuar a leitura? Também é algo precioso de se fazer. Ver um bom filme? Quem sabe. Rezar? Sim, rezar o terço meditado, conta por conta, e terminar com a Salve-Rainha.

 

     Enquanto chove, meu coração dispara. Tento aquietar meu espírito, porque é preciso estar serena numa tarde de chuva, ouvir os seus rumores e sonhar. Belo é o som sobre o telhado, sobre o casario todo, meu pequeno jardim recebendo esta bênção divina.

 

    Vou pegar o violão e compor nesta tarde de chuva. Talvez da inspiração brote uma digna melodia, uma canção de qualidade com versos de alguma poesia. A chuva será as pautas sonoras da minha música interior.

 

    Já passei o café fresco. O pão integral com manteiga e uma fruta compõem a bela refeição da tarde chuvosa. Mas é preciso mais. O coração quer mais, e vou desenhar a planta de uma casa que estou projetando aos poucos, imaginando construí-la num lugarzinho de sonho.

 

    Tomo o café, guardo o projeto e ligo o computador. Há tanta coisa para fazer ali numa tarde de chuva. Escrever, pesquisar assuntos, responder e-mails, encontrar os amigos queridos, todo mundo conectado porque a maioria está em casa, curtindo o mau tempo.

 

    O que é bom tempo? Bom tempo é quando estamos em paz, o espírito leve, a consciência limpa. Quando já pedimos perdão a quem foi preciso pedir e carregamos a esperança nos braços. Bom tempo é quando estamos com saúde e a vida segue no seu trilho de sempre. Bendita rotina!

 

    Nada melhor que uma tarde de chuva para olhar velhas fotos. (Ah, como eu era magrinha quando jovem. Mas até que hoje estou bem). A família na praia, meu lindo, as filhas pequenas, baldinhos, pás, peneiras para a areia, e lá no fundo aquela beleza atlântica, eterno chamado que ouço sem cessar.

 

    Dizem que praia e chuva não combinam. Pode ser. Quem nunca se abrigou dos pingos num quiosque à beira-mar, comendo peixe frito? É maravilhoso. Tem gente que não sai da água por nada. Pode chover, a pessoa está lá pulando as ondas, feliz da vida.

 

    Ao som da chuva, rezo e aproveito para fazer meus pedidos a Deus. Depois, agradeço por todas as graças recebidas. Enquanto chove...

 

Beira-mar

 

Marisa Bueloni

   Tenho mais a vos contar das exaltações marinhas. Toda vez é assim: os céus desabam sobre o mar o vaidoso azul de suas transparências. Espelho vítreo, incêndio de águas e puro fascínio inspiram-me o canto da poesia marinha.

 

    Poema fértil de naturezas, de embates sedutores e místicas evoluções. Peço licença para entrar em tua casa atlântica.  Timidamente, piso em tuas areias e ouso imitar tua música. Avanço-te, onda por onda, cautelosa. Gosto de ti, mar, de teus símbolos, de tudo que te nomeia, feito âncora, vela, cavalo marinho, peixe, o que te representa é o de menos.

 

 

    Mar, ó mar, sofro a interpretação de tuas vozes, teu chamado lento, intermitente. Emoção de pertencer-te por um verão e frequentar teu profundo mistério.

 

    O que me contas é água, sal, sol, vento oceânico, vela branca. Palavras mínimas descrever-te-iam. E o sofrimento dos que nunca te viram? A eles cabe o desenho de tua paisagem movediça, iluminada e funda.

 

    Tua lenda é o feitiço. Tua lua é esta poça prateada, entrevista em teu leito ondulante. Os que morreram em luta contigo, permaneçam inteiros na memória da água. Ah, o cansaço dos salvos! Braços para o mar de areia, pés para a vida dos coqueirais. Que toda valentia tome jeito e redobre cuidados aos teus respingos. Ao teu rugido selvagem. O mar é do signo de Leão.

 

    Do continente, tuas ilhas resplandecem, insinuando tesouros. Vem de teus arquipélagos a parte fragmentada que te representa. Não há barra sem perdida praia brava. Em ressaca, esmerilhas em mil pontas minhas pedras interiores.

 

    Quem te avista, graciosa península, ao aportar, helênico, singrando mares? Antigas naus no remo e na força. Solícito, ofereces porto às chegadas. Recolhes-te tímido e altivo, precavido, recusando convivas.

 

    Que sei eu dos teus lamentos em fúria? Sei do navio que te mancha de óleo, dos petroleiros cortando e poluindo tuas entranhas puríssimas. Choras os peixes que morrem em teu ventre, afogados em venenos e plásticos. Quantos se voltarão para tuas origens, apressados em salvar-te? Pois uma paz oceânica haverá de agradecer toda carícia, toda generosidade, todo afeto.

 

    Não ficará pedra sobre pedra: a Terra, gentil, teme e espera pela inundação. Um planalto digno apaziguará a loucura dos elementos e a terra seca anunciará o novo mundo. Uma arca solitária será vista, equilibrando-se sobre a rocha dura e uma pomba sobrevoará tua face oculta. Depois, que lugar caberá a ti no planeta?

 

    Enquanto não te decides, acredito em correntezas e vigio. Tua profecia é minha crença. Temor às fossas abissais, para onde não vou nem em sonho. Guardo em segredo legítimo o que não conheço de ti.

 

    Chego e parto cheia de presságios. Antes mesmo de lançar-te um último suspiro, mergulho até onde vai o amor que te dedico. E ali, fundeio meu desejo de retornar aos teus braços.

 

    Que triste deixar-te, mar! Voltar mil vezes o olhar, o tráfego ocultando tua explosão. Roubar uma parte de ti nas retinas e impregná-las de saudades, estas que fazem de mim eterna aprendiz do teu convívio.

 

Retrato falado

 

Marisa Bueloni

   Havia nela um precioso universo de coisas e  delicadezas. Cabia em seu semblante uma coleção completa de xícaras caipiras em relevo de rosas e casinhas do campo. De seus braços pendiam caminhos de mesa rendados e blusas bordadas com a beleza do sol. Cada ponto, uma cruzinha detalhada em ouro.

    Havia nela algo que conspirava, transpirava suavemente, um arfar de anseios em favor de coisas como ética, justiça, esperança. Com a fronte abaixada, inspirava um quê de anunciação. O anjo a espiar-lhe de longe, invejando sua humanidade.

    Quem a olhasse de repente, não a veria. Diáfana, exaurida de tanto suspirar. O coração arrancado do peito, a alma dilacerada de sonho. Cansaço de quem tenta o acerto possível. Se falasse, desejaria ser a voz do tempo no ouvido da Terra. Se calasse, almejava competir com o silêncio mais longo e doloroso de todos. Talvez aquele diante da morte.

    Todo o Natal estava dentro dela, e de suas palavras brotou um doce presépio, esperando o nascimento do Menino. Um pouco antes de o Menino nascer, uma pedra pesadíssima desabou sobre ela. Não a esmagou por Deus.

    Contornou a pedra com graça, esperou pelo sino da manhã, e sorriu para a montanha que pairava ameaçadora. De lá, deslizaria uma segunda pedra, um pouco antes da noite de Ano Novo. Recebeu o impacto com lágrimas e perguntou: por quê?

    Não há resposta para quem no coração cultiva algumas emoções como o primeiro ano escolar, a marcha das formigas até o pedaço de bolo, o compartilhamento de um segredo, a compreensão do Teorema de Pitágoras, a chuva, as estrelas, café, o pão com manteiga e todo o resto. E a dor.

    A dor, velha amiga. Seu retrato mais precioso. Nas lembranças, a superação da dor. Cenas se misturando no corredor escuro da memória. Era preciso um esforço sobre-humano para entender o que estava acontecendo. Sim. Não.

    Numa noite de chuva, abraçada ao travesseiro perfumado, era a princesa de um conto de fadas sem o previsível final: ninguém jamais saberia se foram felizes para sempre. Envelhecer era parte de uma aventura maravilhosa, o corpo pedindo paciência. Para que pressa, afinal?

    Sonhou que haveria um passeio de mãos dadas à beira-mar. Uma carta de amor. Um olhar. Uma rosa jogada na soleira da porta. Um brinde a dois. Todo um outono em cânticos. Um piano. Uma música para dançar. A visão do céu.

    Acordou. Ó que retrato digno o espelho lhe mostrava todas as manhãs. Imagem de força, integridade, honra. A idade revelada, claro, não havia nada a esconder. Havia nela uma bondade moral, nenhuma preguiça e a graciosa luta para sobreviver bem.

    Uma vastidão de doçura e carinho a cobria dos pés à cabeça. Emanava dela a maresia do verão.  Tanto mar, tanto mar! E se afogou em lágrimas, as pedras se diluindo no champanhe sem álcool.

    Havia nela o amor. Meio fora de moda? Abrira a porta para ele, deixara entrar o canto do rouxinol, da cotovia, do sabiá. Inda há de ouvir cantar.

    Sim, havia algo nela. Mas ele não viu.

 

 

Sabedoria de Ano Novo

 

Marisa Bueloni

   Quem me dera elaborar um manual para 2017, um receituário bem detalhado, com itens preciosos e importantes, na tentativa de propor algo semelhante a uma sabedoria invulgar, regras de bem viver, de bem amar e sonhar. Quem me dera!

    Vivemos hoje num ambiente altamente tecnológico, virtual e digital, correndo o risco de nos distanciar cada vez mais da realidade, do mundo natural e real, para cair perigosamente numa rede de complexidades que nem sempre corresponde aos anseios do nosso coração.

    Se isso é assustador, é também atraente e fascinante. Com espírito crítico e discernimento, faça-se bom uso de tudo o que dispomos hoje em dia. São novidades que surgem de instante a instante, abrindo inúmeras portas para a comunicação, a informação e o conhecimento.

    Vivemos a era do conhecimento e quem o detém está em posição privilegiada. Trata-se de matéria inquestionável. Pelo conhecimento é possível mudar nossa realidade. Utilizando as ferramentas corretas, tanto intelectuais quanto técnicas, alguém habilidoso descobre como superar as dificuldades de uma região árida. Esta pessoa saberá como produzir água de forma sustentável.

    Segundo o físico Marcelo Gleiser, somos “a consciência cósmica, somos como o Universo reflete sobre si mesmo”. E pela profunda conseqüência desta revelação, acredito que podemos encontrar nela o principal fundamento da vida. Cada um trate de descobri-lo, antes que seja tarde.

    Nunca é tarde para começar um novo tempo. Depois do ano velho marcado por desastres de toda ordem, corrupção a perder de vista, atropelos políticos e prisões impensáveis, tragédias que nos fizeram chorar um luto desesperador, queremos pedir a Deus um pouco de trégua.

    Venho pedindo isso há muito tempo. E não apenas na passagem de um ano para outro, momento que muitos acreditam ser particularmente mágico ou místico, onde nossos desejos podem se realizar se pedidos com força e fé. Sim, talvez, se soubermos simplesmente rezar baixinho, para falar com Deus.

    Deus sabe que um ano de graças depende mais de nós do que d´Ele. Nós precisamos de Deus todos os dias e cabe ao homem transformar este mundo num lugar habitável, onde além de leite e mel, jorrem as fontes da justiça, do amor e da paz. A construção desta cidadela é tarefa humana.

    Se existe uma sabedoria a ser escrita com humildade e entendimento, acredito ser ainda aquela que diz respeito à simplicidade. Viver de modo a tirar da natureza o necessário, sem exauri-la. Respeitar toda forma de vida e agir com gratidão. Ter atitudes éticas, pensando no próximo, em como melhorar a qualidade do nosso meio, da nossa comunidade.

    Frei Saul, numa célebre homilia em missa de Ano Novo, anunciava: “Gente, não muda nada, apenas a data na folhinha”. Sim, não se iluda. A vida continua. Enquanto existir Aleppo e outras insanidades, é impossível pensar num feliz ano novo.

    Nas mensagens proféticas, Nossa Senhora diz que a oração tem o poder de transformar situações. Nesta hora especial, de renovação e de sonhos, a grande sabedoria é orar. Seja a fé a nossa lúcida salvação.

 

Uma noite destas…

 

Marisa Bueloni

   Uma noite destas será Natal. Para mim, para você, para os que sonham. Para os construtores da aurora, para os autores da luz.    

    Uma noite destas pode ser a hora, pode ser agora, me dê a sua mão. Numa noite destas, haverá festas sem fim. Faço parte da cena, a mais bela que já vi. Eu estive nela e nunca mais saí.

    A verdade é que, numa noite destas, cravarei no meu peito mais um poema de saudade, aquela dos anos sessenta, a juventude saindo pelos poros, a vida e seu futuro.

     Então, envolta em névoas, penetro mansamente no sonho do passado, a calça boca de sino e o colar de couro. Ainda hoje, uso e abuso das saias indianas, pulseiras, brincos, uma releitura riponga que me renova o corpo e a alma.

    A alma precisa de tempo, tempo de dizer que você me inspira a lua mais bela, a noite sem medos e a canção infinita. O mundo trepidava. Do you wanna dance? E num baile cuba-libre, éramos livres para praticar a esperança.

    Você me tomou em seus braços e éramos feitos da mesma matéria dos sonhos. Matéria frágil. Este lado virado para cima. Cuidado! Soltei a sua mão e me perdi pelo salão. Eu queria plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho. A árvore não vingou, meu livro encalhou por aí. Só as filhas brilham. Envelheci na cidade. Feliz aniversário para mim que já não tenho idade.

    Dá para ver que se trata de uma poesia recorrente, mística e arrebatadora? É que meu coração pequenino, num átimo de temor, ouve o badalo de um sino. Um sino ou um tambor? Seria o rufar do destino, a luta, o desatino, o som confuso da dor? Tambor ou sino, sino ou tambor?   Que som é esse, Senhor? Badala o sino grandioso, troa o tambor furioso, são anjos justiceiros, suponho, em terror. Trazem as taças divinas, abrem os livros lacrados, vestem-se de dourados, que terrível, que esplendor!    

Que dias, que dias! Ao som destas melodias, batidas no bronze e no surdo das algaravias. Desperta minha alma curiosa, desperta uma rosa. Dorme, flor jardineira, que a Hora não é chegada. Não é dia ainda, é madrugada. Dorme, rosa do tempo, e deixa que rufem tambores, que sonhem os sonhadores, que badalem os sinos, eloquentes. Cuida, rosa querida, que despertem as gentes.

    Meu coração pequenino, às vezes, ouve um sino que badala nas alturas, que se ouve nas lonjuras, pentagrama de ternuras. Ah, que sino, Senhor! Meu coração pequenino, às vezes, ouve um tambor, que soa como um estrondo, que bate um bumbo redondo e para ele respondo: Eis, vem chegado o Amor!

    Numa noite destas, será Natal. Buscarei seu olhar cúmplice, a beleza do que existe agora, do que nasce a cada instante. Nossas mãos se tocarão à meia-noite, na distância que também fala e diz as afetuosas e benditas palavras. Já não são frases de praxe, mas de um significado novo.

    Eu sonho o Natal, canto o Natal de Jesus, quero anunciar do alto dos telhados a boa nova do Salvador. Faço isso todos os anos, querido leitor. E para você desejo um santo e feliz Natal.

 

Bilhetes de amor

 

Marisa Bueloni

   Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver / e a primeira estrela que vier/ para enfeitar a noite do meu bem.

   Ah, meu bem! Como enfeitar a tua noite, se já tens nos olhos as estrelas necessárias? Elas me apontam um horizonte possível, entremeado de sonhos. Penso em chegar lá, talvez, habitar o chão feito de areia e poesia, para morar definitivamente na terra da felicidade.

   Queixo-me às rosas / mas que bobagem, as rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti.

   De ti, vem um perfume bom do abraço. Do café descafeinado, a mesa posta e perfumada de gentilezas. Vejo as rosas se abrindo em cada canto da tua alma inquieta. Inquieto-me. Por que rosas nos dizem tanto?

   Você é isso, estrela matutina / luz que descortina um mundo encantador / Você é isso: é parto de ternura/ lágrima que é pura / paz do meu amor.

   Que amor nos dá paz? Que tipo de paz é reservado aos que amam, apaixonam-se, e sofrem? Depois que um poeta escreveu versos deste calibre, tudo será redundante na tentativa de cantar a mesma beleza. Apago meu poema noturno, considero o estro duvidoso e permito que a noite anuncie o parto da ternura.

   Ah, meu amor, não vás embora / vê a vida como chora / vê que triste esta canção.

   Sim, meu amor, há algumas tristezas profundas neste chão que trilhamos espantados. Não pisamos nos astros, distraídos: estes pertencem à outra canção. Mas o universo nos acolhe em átomos e quando nos perdemos, nossas mãos tateiam o rastro do que chamamos mundo. Vasto mundo.

   Eu sem você não tenho por que / porque sem você não sei nem chorar / Sou chama sem luz, jardim sem luar/ Luar sem amor, amor sem se dar.

   Às vezes, a vida se completa. Basta uma só pessoa. Aquela. E quando estamos em seus braços, o mundo pode acabar lá fora, nada mais importa.  A plenitude é perfeita e límpida. O coração não cabe dentro do peito, diante de um olhar sereno que nos contempla em silêncio. A respiração fica suspensa entre o céu e a terra.

   Vem que eu te quero fraco / vem que eu te quero tolo/ vem que eu te quero todo meu.

   Mas se não puder vir, mande uma mensagem, passe um whats, estarei conectada, assentindo que a tecnologia jamais irá suplantar as palavras ditas ao telefone de Graham Bell. Leitor! Imagine o efeito, se pronunciadas ao vivo! Você teria coragem?

   Ah, se eu te pudesse fazer entender / sem seu amor eu não posso viver / E sem nós dois o que resta sou eu/ Eu assim, tão só/ Mas eu preciso aprender a ser só.

   Bendita solidão solidária nas horas mais fundas da agonia existencial, nos momentos em que não há rosas, nem anjos ou passarinhos para escoltar nossa passagem por aí. Contudo, há batalhas belas para lutar, sonhos para viver e saudades para chorar.

   É preciso amor pra poder pulsar / é preciso paz pra poder sorrir/ é preciso a chuva para florir.

   Diria o grande, belo e saudoso Ariano Suassuna: Deus sabe o que faz!

 

Neste Natal

 

Marisa Bueloni

   Neste Natal, procurei os olhos do meu amor e eles não estavam lá... Não estava em parte alguma o olhar capaz de transmitir tanta poesia. Não havia nada em seu lugar, a não ser uma profunda névoa, na tarde da despedida. Os olhos se fecharam, as pálpebras se uniram, coladas pelo peso da finitude humana.

     Neste Natal procurei um carinho à beira da cama, num gesto de quem dá a última colherada de comida – e ele estava lá -, escondido por entre as dobras de um tempo que pareceu uma eternidade, mas passou voando. O Natal chegou e ninguém viu, nem os olhos do meu amor que se fecharam para sempre.

     Neste Natal, procurei uma flor, uma vermelha, como o meu amado gostava. Uma flor que simbolizasse a beleza da vida, o fogo da paixão, a força das lutas, o sangue dos mártires, o coração pulsando o vigor da saúde, o tapete vermelho por onde passam as celebridades. A legitimidade das intenções, a coragem, a ousadia, a fé - a certeza do que se está fazendo.

     Neste Natal, procurei pelo prodígio, capaz de reverter a dor do nome agora gravado numa placa reluzente – memória de quem existiu. Chamei o meu Anjo, pedi ajuda, e tive de aceitar a representação da ausência, a insondável certeza de um adeus, passagem secreta nas mansões do pensamento.

     Neste Natal, procurei um presente para o meu amado, mas ele já não está entre nós e não pode recebê-lo. Contudo, o presente está dentro do meu coração, no juramento de amor eterno, até que a morte nos separe, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Um amor que se eterniza a cada dia que passa, guardado numa caixa embrulhada com papel de estrelas e flores, que termina num laço dourado - o sonho de viver e de amar.

     Neste Natal, procurei algo que eu não sabia o que era e era de uma beleza imensa. Fragmentos de impressões voláteis, visões do nunca mais, de olhar e não ver, de ver e não enxergar. Onde está? Por onde andou? Vai voltar? Ah, esta permanência com cheiro de perfume masculino, a indefinição devoradora. De onde vem o sentimento etéreo de que ainda há algo a ser dito, a ser feito, a ser cumprido? Falta a viagem a uma ilha encantada, a um lugar inesquecível, onde a vida seja eterna.

     Neste Natal, procuro por respostas e minhas perguntas ficam suspensas entre o céu e a terra. Espanto, delírio, fraqueza. Mas, o espírito está firme e forte, porque meu amado era assim. Era uma fortaleza onde a gente podia se abrigar.

Neste Natal, procuro por objetos no criado-mudo que ainda é dele. Pelas gavetas, bem guardados, seus óculos de grau. O ray-ban dentro do estojo original. A carteira de couro preto, com o CIC e o RG, algumas fotos 3x4, onde seus olhos me perguntam: tudo bem? Sim, eu vou bem, estou aqui acariciando seus pertences, os papéis com sua letra, sua coleção de moedas antigas, seu relógio, suas coisas, que preservo para beijá-las sempre, meu anjo.

     Encontro nossa foto, juntos, eu recostada em seu ombro, era a festa do Natal de 2007.  Você começava a emagrecer, a roupa estava ficando larga em seu corpo e eu te abraçava para reter em meus braços a sua doçura.

     Neste Natal, celebro a sua vida. Dou graças por nossos momentos. Pelas missas de Natal a que assistimos juntos.  Revejo nossas fotos. Numa delas, especialmente carismática, você está sorrindo, antevendo a delícia do rocambole recheado de chocolate. Brindo a nós dois, na taça que transborda de saudade. Ainda estou aqui para celebrar. Você no retrato; eu na esperança.

     Neste Natal, o que sinto não tem nome. E assim será a cada dezembro - o infausto mês da sua partida. Tento acompanhar seu trajeto para a glória, vasculhando o vazio que habita os cantos da nossa casa. E minha alma bate de frente com a sua. É você que procuro neste Natal.

 

A beleza do Advento

 

Marisa Bueloni

   Estamos vivendo aquele tempo inconfundível. Digo sempre que o Advento natalino traz para nossa vida um hálito novo. Basta começar dezembro e vemos anjos pairando no ar, uma emoção encantadora e pura se acende em nosso peito.

   Esta época bendita me reporta à infância, à escola primária, às férias compridas e às mangas. Com uma mangueira no fundo do quintal, a sétima maravilha era esperar a data magnífica, sentada no galho mais alto, de onde a menina governava o mundo.

   Naquele tempo, todas as verdades eram absolutas. Havia poucas dúvidas no coração. A casa era sagrada, o pai e a mãe onipresentes, regendo a ordem para tudo e para todos. Meus irmãos e eu convivíamos em grande harmonia e era um sonho ficar acordada até tarde para ir à Missa do Galo na Igreja dos Frades.

   Durante aquele santo ofício, que coisas se passavam em minha alma? Quase não me lembro. Mas hoje tenho certeza de que era um Natal vivido com fervor. Um Natal feito de novenas, cantos, celebrações e abraços. E havia a chegada de parentes, os tios e primos de São Paulo, a madrinha adorada, a casa sempre cheia para a completa confraternização.

   O Advento é uma preparação sem igual para a nossa fé. Trata-se de um tempo de graças para os crentes. Talvez os agnósticos e os não crentes, enfim, também se deixem tocar por este espírito de bondade e de paz que se espalha em toda parte.

   Para os cristãos, é a data máxima, o nascimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus feito Homem. Ele está ali, em cada presépio e sua concepção do que tenha sido aquela noite santa e feliz. Jesus, Maria e José,  a caminha de palhas, carneirinhos, ovelhas, pastores, uma noite estrelada, a estrela de Belém.

   A cena humilde e majestosa se repete na montagem do que foi o nascimento do Menino. Quão aflito estaria o jovem casal, ao perceber que era chegada a hora da  mulher dar à luz? Como as coisas aconteceram?

   A grandeza e o mistério daquela noite estão reproduzidos no presépio encantador, conforme a imaginação de cada um, buscando representar o mais belo cenário concebido pelo amor.

   Para mim, Advento é amor. Contudo, um amor sofrido, marcado por lembranças, as da infância e as da juventude, quando o Natal não pesava tanto no coração como agora. Já não sei mais que tempos vivi, algumas cenas se apagaram das retinas e as semanas que antecedem o Natal me inspiram profunda tristeza, um abatimento confuso e indefinido.

   São sentimentos contraditórios, pois também sentimos alegria, vontade de contatar quem está longe, desejar felicidades, escrever uma crônica onde se derrama a alma e se fica de joelhos diante da vida.

   E assim, é chegado o Advento deste ano da graça de 2016. Lembro dos presságios para o ano 2000, quando se profetizava que o mundo iria acabar. Não acabou e aqui estamos na festiva espera do Rei.

   Que as santas velas do Advento acendam em nós um pouco mais de esperança. Tivemos a bravura de derrubar a presidente e contamos com um novo governo. Mas ainda esperamos as mudanças necessárias.

   É fatal a pergunta: mudou o Natal ou mudei eu?

 

E se a noite chegar...

 

Marisa Bueloni

   E se a noite chegar sem nenhum sonho em nosso coração, nenhum alento em nosso peito, não demos o dia como perdido. Ó não. Busquemos o sonho onde ele costuma vicejar. Tentemos encontrar alento onde brotam esperanças. Onde?

   Também quero descobrir a morada dos sonhos. Lá vivem as lutas apaixonadas, a grandeza das atitudes, as rosas vermelhas, as fábulas e as ilusões. Alguém me escreve afirmando que “a vida não passa de uma ilusão.” Pode ser uma inferência precipitada, fruto de alguma decepção. Solidária, respondo que, a despeito de tudo, a vida guarda coisas preciosas.

   Não sei o que é mais onírico: a esperança ou a ilusão. Ambas são denunciadoras de um estado de felicidade incompreensível para quem não as vive com a devida intensidade. Embora “felicidade” seja algo muito particular, com diferentes definições que variam de pessoa para pessoa, há um conceito geral do que seja ser feliz.

   Mesmo nesta geral constituição do estado de felicidade, vemos que se pode ser feliz com pouco. Li uma frase recentemente, a respeito de quem tem tudo, mas sente falta de algo maior, de paz interior, de uma riqueza imaterial. Do outro lado da vida, há os que têm tão pouco, tão pouco e, no entanto, nada lhes falta, nem mesmo o sorriso no rosto, a paz e a alegria da alma.

   Mas se a noite chegar sem que estejamos em paz, sentindo-nos devedores de algo a alguém, seja uma palavra, um gesto, uma visita, guardemos a falha em nosso coração. A própria noite nos revelará como agir, o que fazer e o que pensar.

   Pensar com o coração, eis o segredo de tudo. Rezar com o coração, eis a oração mais bela. Agir com o coração, eis o ato mais humano e mais legítimo, que dificilmente causará algum tipo de engano. Ninguém se sentirá mal, ninguém achará que magoou alguém, se agiu com a retidão da alma e do afeto.

   Penso que ilusões e esperanças sempre povoarão nosso ilustre sonho. Por mais utópico se configure, por mais distante seja a praia deserta onde gostaríamos de aportar. Para ali habitar com o movimento das ondas e das marés, a paz das conchas, a ovulação dos peixes, o vento maravilhoso para secar o cabelo ao sol. A terra da felicidade.

   Mas para tanto é preciso saúde. Saúde do corpo, uma coluna forte e pés para caminhar pelo mundo. Quem tem um sonho tem toda a vida pela frente. Quem tem um sonho viverá eternamente. Se a noite chegar sem nenhuma doçura, lutemos para encontrá-la, ainda que debaixo do nosso amado e santo travesseiro.

   Não há hora melhor para sonhar e mexer com a fantasia que nos habita deste sempre. Antes de conciliar o sono, as imagens maravilhosas se formam diante dos nossos olhos fechados. Desta forma, sem enxergar nada, vislumbramos a beleza. E assim, adormecemos sonhando a vida.

   Se a noite chegar sem nenhum sonho, eu sinto muito, e sofro ao escrever isso. Porque é triste demais ir dormir sem um sonho. Sem uma esperança. Sem uma ilusão.

   Por mais humilde seja, não deixemos morrer no peito aquele anseio pequenino, a graça da vida, a razão da nossa luta. Às vezes, não ter um sonho dói tanto, tanto, que é preciso tê-lo, só para não sofrer.

 

Malabaristas das ruas

 

Marisa Bueloni

   A cidade toda já viu e certamente assiste com simpatia aos artistas de rua que invadiram os cruzamentos de determinadas vias de trânsito, sobretudo onde os faróis são mais demorados, permitindo que se exibam como verdadeiros astros circenses.

   São moços muito simpáticos, alguns falando uma língua que parece ser um castelhano. No cruzamento da Avenida Dr. Paulo de Moraes com a Rua Benjamim Constant, um destes artistas coloca até mesmo uma corda entre um poste e outro, fechando a passagem. E ali, o talentoso equilibrista faz o seu show de graça em plena luz do dia.

   Como negar um trocado a quem está tentando driblar a crise que nos assolou de norte a sul? Ah, se não dá para escapar da corda bamba da vida, se não é mais possível equilibrar-se nas despesas e nas contas, se há filhos para criar e se todos têm direito a um sagrado prato de comida, o jeito é ir à luta.

   Sim, os equilibristas e malabaristas estão entre nós e os nossos veículos, em alguns pontos da cidade. Não olhemos para eles com desdém, reprovação ou ira. Oferece um dinheirinho quem quer e quem pode. Ninguém é obrigado a dar nada. Eles não estão atrapalhando o trânsito, uma vez que se apresentam exatamente no tempo em que o farol está fechado. Sabem perfeitamente a hora de parar o show e ir de carro em carro, estendendo o chapéu coco.

   Contudo, dia destes, vi um moço bem jovem fazendo malabarismo com fogo, igual ao número visto nas arenas de circos. O rapaz se apresentava num cruzamento onde há um posto de combustíveis. Havia certa distância dos malabares com fogo até as bombas, mas o risco era evidente. Fiquei esperando o semáforo abrir e assisti ao belo show. Mas, se uma daquelas peças voasse da mão do moço e fosse em direção ao posto, esta não seria uma situação segura.

   Então, é bom prevenir, tomar cuidado e evitar este tipo de exibição pirotécnica perto de postos de combustível. Não sabemos que tipo de licença ou de alvará é concedido a estes artistas para atuarem pelas ruas da cidade, se estão preparados para esse gênero de atividade que sempre envolve algum tipo de perigo. De minha parte, fico filosofando e sofismando dentro do meu abençoado carrinho quando os vejo fazendo os seus números nos cruzamentos.

   Que tipo de situação os levou a amarrar a corda de um poste a outro, para equilibrar-se e desnudar-se assim, estou precisando ganhar a vida, senhores, e aqui estou fazendo o que sei fazer. Se gostar do meu espetáculo e me der uma nota ou uma moeda, ficarei grato.

   Ao moço que fazia malabarismo com fogo, cumprimentei e dei-lhe os parabéns. Ele não deixou nenhuma peça cair, teve um desempenho artístico perfeito e depois foi de carro em carro, agradecendo com um sorriso, recebesse ou não a gratificação esperada.

   Talvez nos ajude a refletir. Como nos comportamos nos cruzamentos da vida, diante de uma dura decisão? E o malabarismo para sobreviver? Depois da nossa luta, do nosso show particular, dando conta de todos os compromissos, qual a recompensa pela estafa nossa de cada dia?

   Que Deus nos pague!

 

Retalhos da vida

 

Marisa Bueloni

   E assim é. Nesta espécie de agonia quando o dia acaba, no entardecer que é uma metáfora da nossa vida, a finitude de todas as coisas. Lá se foi o sol, vem a noite e este manto escuro obscurece algo dentro de nós.

   Um tio querido me confessou tudo isso. O quanto sofria no anoitecer. A sombria passagem do dia para a noite era um ritual funéreo, rasgando-lhe a alma. E aos domingos, ao ouvir a música do “Fantástico” na tevê, sentia ímpetos de se atirar da janela do apartamento.

   O horário de verão faz o sol brilhar mais tempo e isso nos confunde um pouco. Os ponteiros do relógio avançam e a claridade prolongada altera nossa percepção. De qualquer forma, a vida avança mais do que o relógio e ninguém a detém por nada. Passo a passo, a vida vai em frente, independente do quanto conseguimos alcançá-la.

   Acompanhar até onde ela avança é tarefa hercúlea. Está sempre a muitas léguas de nós e penso que daí se originou a expressão “correr atrás do prejuízo”. Correr atrás da vida é algo estressante e infrutífero. Ou andamos com ela, a cada passada, no tempo e no espaço, ou estaremos eternamente defasados.

   A vida tem um compasso rítmico, uma sintonia própria, a regência correta e harmônica de cada momento e cada ação. Tudo nela se encaixa com perfeição absoluta e bíblica. Há tempo para rir e para chorar. Tempo para juntar e tempo de lançar fora. Tempo de odiar e de amar. Tempo para tudo.

   Tempo de ser criança, de ser jovem, de ser adulto. Tempo de casar e ter filhos. Ser pai e ser mãe, educar, deixar que os filhos sigam seus caminhos e façam suas vidas também. Mas não se afastem muito, por favor. Tempo de sermos avós, de brincar com os netos, pequenas e apaixonantes criaturas que povoam a nossa gentil velhice.

   Netos são o entardecer da vida e o alvorecer da esperança. Vendo netos florescerem em nossos braços, temos uma compreensão perfeita deste compasso, desta rítmica dança do tempo. Podemos pegar com nossas mãos a magia e a beleza do que criamos um dia. É de nossa linhagem e aí estão.

   Tudo isso representa retalhos lindos unidos por um fio de ouro, pedaços de sonhos, viagens, festas, família reunida em volta de uma abençoada mesa, brindes, risos, gente amada que já partiu e novos que chegam. As fotos estão pelas paredes e não nos deixam mentir. A vida passa, a vida passou. Um dia, aquele momento existiu para nós e para o outro.

   São estas peças em sépia que hoje se juntam novamente e se apresentam como um lindo quadro. Não apenas na memória, mas vívido para meus olhos, um eterno movimento de beleza e solidez que não cessa jamais.

   Estão por toda parte, sobretudo dentro do meu coração. Toda uma vida se foi e está impregnada de saudade, de gavetas arrumadas, de fotografias. Aquele sonho que não devemos perder dentro de nós, seja qual for. Viver numa praia, mudar de país, comprar um barco e morar nele, construir a casa mil vezes planejada, voltar a estudar.

   A faculdade da vida nos espera. Somos todos alunos, eternos aprendizes desta professora muito qualificada para ensinar. Nota dez.

 

Dia de Todos os Santos

 

Marisa Bueloni

   No ano 835 D.C., a Igreja Católica romana instituiu a data de 1º de novembro como um feriado para homenagear todos os santos, conhecidos e desconhecidos. Seria uma forma de celebrar os santos e mártires que porventura ficassem esquecidos durante o ano.

   Hoje, dia 1º de novembro, é o Dia de Todos os Santos, uma festa em que se celebram os homens e mulheres cujas vidas foram reconhecidamente santas e dignas dos altares. Na Igreja Católica, celebra-se também a comunhão dos santos, não somente pelo seu exemplo de vida e de santidade, mas também pelo sentido de união fraternal e da caridade a que todos somos inspirados a viver.

   Para os católicos e demais crentes, esta data significa um lindo chamado à santidade. Somos todos convidados a ser santos, de acordo com a condição de vida de cada pessoa. Eu quero ser santa, você talvez deseje ser santo, todos nós gostaríamos de ser santos e não somos. Porque a carne é fraca e caímos em desgraça em todo momento.

   Não é fácil ser santo no mundo de hoje,  embora se reconheça a existência dos chamados “santos modernos”, pessoas que se doam, se gastam e se entregam ao serviço de Deus e da fé que professam, muitas vezes no anonimato, realizando um trabalho de amor ao próximo, buscando construir um mundo mais humano e mais justo. Santa Madre Tereza de Calcutá é um exemplo desta beleza de vida devotada ao amor fraternal e à caridade.

   Recentemente, fui destratada numa mensagem pela internet. Foi-me dito que nós, católicos, fazemos “barganha” com Deus. Nossas orações, novenas e promessas aos santos seriam meras “negociações” para obtenção de benefícios particulares e especiais.

   Então, ao ler que os católicos “pedem coisas” aos que morreram em santidade, veio-me à lembrança uma entrevista que vi na tevê, de um estudioso especialista em vida de santos. O entrevistado sugeriu não fazer pedidos aos santos de praxe, como a Santo Antonio, por exemplo, tido como um grande casamenteiro. Rindo gentilmente, opinou que se façam os pedidos aos santos “menos ocupados”, àqueles de quem ninguém quase se lembra.

   Um destes pouco requisitados seria Santo Elesbão. Eu o desconhecia e comecei a investigar sua vida. Elesbão foi um rei católico do século VI, um negro etíope, estimado pelos seus súditos e seu reino propagava a fé cristã. Mas o reino vizinho era chefiado por Dunaan, que promoveu um massacre no qual morreram cerca de quatro mil cristãos. Elesbão declarou guerra a Dunaan e liderou o seu povo, saindo-se vencedor.

   Mais tarde, sentindo o chamado de Deus, Elesbão entregou o trono ao seu filho e dividiu seus tesouros com os súditos pobres. Partiu para Jerusalém, onde depositou a coroa real na Igreja do Santo Sepulcro. Retirou-se para o deserto, vivendo como monge contemplativo até sua morte no ano de 555. Sua festa se celebra no dia 27 de outubro.

   Que os anjos e santos nos protejam. De forma invisível, trava-se hoje uma batalha da luz contra as trevas. Só os que lutam arduamente pela santidade conseguem entender esta terrível luta. Todos os santos roguem por nós! Amen.

 

Dor de amor

 

Marisa Bueloni

   Ela me escreve tarde da noite. Há algumas semanas, vem me contando que vive o drama de uma paixão avassaladora, ama sem ser amada, tragédia grega. Fel e mel misturados em proporções desiguais e loucas. Sem rodeios, sem pudores, infeliz, ela tenta resumir sua mágoa. Vejo que tornamo-nos todos forçosamente objetivos, explícitos e categóricos, até por falta de tempo.

   Apaixonou-se perdidamente numa idade em que se supõe o adormecimento dos sentidos, a acomodação da libido. Sente-se ridícula, desprezível e senil. Perdeu a vontade de viver, já visitou o terapeuta e um antidepressivo leve foi acrescentado a uma já respeitável lista de medicamentos diários.

   “Quero morrer, amiga, que dor insuportável!”. Suas frases são de agonia e êxtase, vejo verterem lágrimas do seu teclado em cada letra, em cada toque de amor. Uma dor “sem originalidade”, segundo ela, sem diagnóstico, sem esperança de cura. Dor generalizada, “fibromialgia da alma”, ela romantiza.

   Um pouco dramática, compara-se à Demi Moore, quando esta foi abandonada pelo marido, Ashton Kutcher, ocasião em que a atriz ficou pele e osso. Mas ela me acalma e conta dos seus ainda sessenta quilos, ótimos para a sua idade. (Ele será mesmo digno de tanto sofrimento?).

   Parou de rezar, diz viver um deserto espiritual. Pede a Deus uma trégua. Precisa de descanso. Uma dor que ainda não sentira, ela que sempre fora tão amada, tão correspondida em seus amores. Tento consolá-la com minhas mais produtivas palavras, as de praxe e as criadas pelo vocabulário da vida. Mando um poema e ela responde “pelo amor de Deus”, que eu tenha piedade dela.

   Pede-me conselhos, digo que fique quieta no seu canto. Silêncio no Broocklyn, meu anjo. Conta que gasta muito em roupas e joias. Rebato que se conquista alguém com um rosto alegre, verdadeiro e afetuoso, com uma alma pura e generosa. Um comportamento limpo, honesto, justo. Já não crê nestes valores, está confusa, ausente, perdida.

    Juntas, reconhecemos a trágica verdade: o corpo envelhece, mas a alma não. Juntas, concordamos com todas as premissas acerca do amor. Ela afirma que amar sem ser amada é uma espécie de desonra, de inglória, de desumanidade. Sobretudo depois que entregou o coração, se declarou. E ele disse: “Passar bem”.

   Ela é tão frágil, tão doce, tão linda. Sofre a rejeição dolorosa, a desesperada dor da saudade fisgando o coração. Minha amiga doce e amorosa! Agora mais amorosa do que nunca! O que fazer? Se quiser vir até aqui, prometo abraçá-la profundamente e cozinhar uma canja curativa, fazer um chá consolador. Faço massagem com um creme de cânfora onde a dor corporal se instalou junto com a outra, nas suas costas dobradas.  E iremos rezar um terço à Virgem Maria.

   Pelo Messenger, me pergunta se enlouqueceu. Respondo que é a bela loucura do amor. São duas da manhã, ouvindo estrelas, ora direis, quando nos despedimos. Ela dá boa noite e manda um coração vermelho. Respondo que já é bom dia. Ela manda um sol luminoso.

   Ó desgraça de vida! Ó céus, ó terra! Ó coração vermelho, ó sol inflamado! O que é este dardo, meu bardo?

 

Tempo de dar graças

 

Marisa Bueloni

   Dia destes, uma amiga querida e eu conversávamos solenemente sobre isso: agradecer por tudo o que nos cerca e nos facilita a vida. Ela disse que se senta na varanda, a casa em obras, medita e agradece. Contei que louvo a sagrada mesa onde faço minha refeição e até mesmo os eletrodomésticos, auxiliares preciosos na nossa cozinha. Mas, sobretudo, dou graças pela água, tão somente pela água.

    A bênção da água chega até a nossa casa, feito um milagre maravilhoso! A água do nosso uso diário, a água que deixa a nossa roupa tão boa de usar novamente, limpa, fresca e perfumada. Esta água benfazeja nos cura e nos salva sempre, quando nosso maior desejo é um banho quente e a cama com lençóis aconchegantes.

    Ao cozinhar, vou lavando a louça e me lembro das cenas na tevê, as pobres mulheres que caminham por quilômetros equilibrando um balde na cabeça, levando para a casa e para os filhos uma água suja e perigosa. A imagem nos comove, ficamos indignados, mas para nós, basta abrir a torneira e a água está ali, um presente do céu.

    Então, evoco a música celestial e eterna, um salmo encantador. A comida vai sendo feita, os utensílios lavados e penso na humilde “casinha de Nazaré”. A pobreza da Sagrada Família foi descrita no livro de uma mística que teve muitas visões. Maria cultivava uma horta, havia algumas árvores frutíferas no fundo do quintal, criação de aves, ela apanhava uma fruta para o Filho, guardava alguns ovos, colhia verduras. E quando estavam juntos, comiam em silêncio. A mesa e os bancos simples feitos por José. Tudo era paz.

    Tanto já sonhei com uma casinha pequenina, onde o nosso amor nasceu. Mil vezes construí em pensamento uma gentil morada num terreninho em local aprazível, lá no campo. Eu colocaria uma placa: “Senhor ladrão, não perca seu tempo. Sou uma aposentada e pensionista do INSS, o senhor deve ganhar mais do que eu. Tudo o que tenho é esta casinha e o carrinho na garagem. Lá dentro, o bem mais preciso é um velho computador. E dois relógios que foram do meu lindo. Por favor, não estrague nem a maçaneta e a porta de entrada. Muito grata”.

    Na engenharia do meu sonho, louvo as coisas pequeninas, aparentemente insignificantes, mas sem as quais a vida se tornaria mais difícil. A agulha e a linha. A faca de cortar o pão. Um sofá bom. Um chuveiro novo. Minha mãe dizia que temos de valorizar tudo, usar o que compramos até acabar, pois cada coisa tem sua utilidade e sua sagrada presença entre nós.

    Um canto ecoa pelos ares, ressoando no topo das colinas e dos rochedos, no alto dos telhados. Que toda a terra exulte e dê glórias ao Senhor. As aves do céu cantam em louvor ao Pai que as alimenta. As montanhas reverberam a glória divina, em esplendor e majestade. Um coração pequenino, cujo corpo começa a ser vencido pelos anos, comprime-se em sua miséria terrena, adorando timidamente o Senhor dos exércitos.

    Minha alma glorifica o Senhor. Meu espírito exulta em Deus, meu Salvador. Louvor e glória a Vós, ó Deus do Universo.

 

Fazer as malas 

 

Marisa Bueloni

   Já tive paixão por fazer malas. Capricho, organização, ordem, peças separadas por tamanho, cor, uso, enfim, nunca precisei destes manuais que explicam como fazer malas. Fazia a minha e as das duas filhas, quando pequenas. Meu lindo fazia a dele, na qual eu dava uma vistoria, porque costumava levar bem pouca coisa. E ficava pronta num minuto.

            Em qualquer viagem curta, queremos nos precaver com calor, frio ou chuva, mesmo sabendo da previsão do tempo. Acabamos nos perdendo na quantidade de roupa e a mala fica um chumbo de tão pesada. Tudo bem, hoje tem as rodinhas, mas houve um tempo em que malas eram carregadas pelas alças. E como pesavam!

            Daí a expressão “mala sem alça”... Imagine carregar, transportar mala sem a alça. Outra coisa terrível de lidar é colchão desprovido daquela alcinha lateral. O fabricante tem de pensar no consumidor. É preciso colocar uma alça auxiliar na lateral do colchão, para transporte ou quando se deseja mudá-lo de posição na cama e isso deve ser feito regularmente.

            Viagem nos remete a um lugar onde a cama e o quarto não serão os nossos. O banheiro, as toalhas, algumas coisas tão familiares e tão intensamente amadas! Enfim, minha paixão por fazer malas acabou. Hoje, sofro com a arrumação de uma simples maleta para passar o final de semana fora de casa.

            Tenho profunda admiração por quem viaja sem parar. A pessoa mal chega de um país, já está pensando em outro. Acabou de desfazer as malas e está fazendo de novo. Perdi este pique, este ânimo. Uma simples viagem à praia costuma me deixar pelo menos uma noite sem dormir de tanto pensar. Pensar na mala. Pode rir.

            Viagem à praia exige um ritual de preparação. Eu que o diga! Depende muito do local onde nos hospedamos, é claro. Se for numa casa alugada, é preciso levar desde roupa de cama, banho e também de mesa, porque pelo menos o café da manhã será lá. E para quem gosta de começar o dia com pães, torradas, frutas, geléias, queijos, café, leite, sucos, é preciso fazer uma compra inicial e também abastecer a geladeira com coisas para ir beliscando quando bate a fome. Ou seja, férias na praia, mas com supermercado. Inclua todo o material de limpeza e higiene da casa também. Ufa!

            Ainda que a hospedagem seja num hotel ou pousada, com toda a boa estrutura de hotelaria, temos de pensar na nossa mala. Além do arsenal de filtros, xampus, cremes, cosméticos e apetrechos de toda ordem, a mala de praia é sempre especial. Sem contar que é preciso uma sacola à parte só para as bolsas de palha, sandálias e chinelos.

            Depois de certa idade, não podem faltar os remédios. Tem o da pressão, a aspirina, a vitamina E e D, a atorvastatina e o alendronato de sódio. Lexotan, pois pode pintar insônia brava à beira-mar. E protetor auricular, nunca se sabe do barulho à noite. Não se pode esquecer o paracetamol, porque a dor não avisa quando chega.

            Sim, sua tonta, tem farmácia lá, mas a gente cresceu ouvindo a mãe dizer que é melhor prevenir do que remediar. Sábio conselho, de eterna eficiência. Saudades, mãe querida!

 

Humores do mundo 

 

Marisa Bueloni

   O mundo tem seus ruídos, seus humores e seus mistérios. Quando me refiro a humores, contemplo a abrangência de grande parte do que é criado, do que nos pertence, nos caracteriza e nos individualiza. Tal cada um dos quatro tipos de matéria líquida ou semilíquida que existiriam no nosso organismo. No ser humano sadio estes quatro elementos se encontrariam em equilíbrio e formariam o temperamento. Já a falta deste equilíbrio determinaria o aparecimento de doenças. Seriam eles: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra.

   Juro que não entrarei em detalhes orgânicos e físico-químicos destas substâncias, até porque os nomes me impressionam. Uma vez, mandei um livro com meus poemas de presente para um editor. A secretária dele me devolveu, agradecendo. Escrevi ao editor, comunicando o fato e ele respondeu: “Ah, Marisa, se raiva seca matasse, eu estaria morto”. Pediu mil desculpas e para eu mandar o livro de novo.

   Então, raiva seca, assim como bílis negra, me parece uma nomenclatura de nervosa e irada significância. De qualquer forma, a cronista deseja se confraternizar com todos os vocábulos existentes, em todas as línguas, porque ama a palavra e a respeita, fervorosamente.

   Assim, à semelhança dos humores que regem nosso corpo e nosso estado de espírito, penso nos humores nas entranhas da Terra, o magma profundo expelido pelos vulcões; os vapores dos gêiseres; os atritos entre as placas tectônicas; as correntes marinhas e todo tipo de movimento desconhecido, plasmado na Criação.

   Deseja a cronista, em primaveril êxtase, exaltar os humores do mundo, tal os que no corpo humano precisam estar equilibrados para que seja formada a têmpera da alma. Teorias à parte, que ruídos são esses, que humores se enterram no seio do planeta, para que pressintamos algo maior vindo em nossa direção?

   Confesso que também não sei. Mas já me debrucei em livros, estudei muito quando o livro era o nosso material de pesquisa. Agora, temos o Google, a bíblia da informação. Contudo, a resposta e a descoberta não repousam apenas na enciclopédia virtual, mas percorrem um longo caminho até serem processadas em nossa mente.

     À nossa volta, há ruídos de toda espécie. Há dias em que ando com o vidro do carro fechado para não ouvir o barulho do lado de fora e dos demais veículos circulando, pois quero me concentrar na música do rádio.

      Há tantos humores e sons fluindo através do dia e do tempo, poluindo nossa lucidez! Mas há um humor especial, algo que sobe dos abismos, das profundezas abissais e nos atinge por inteiro. Há outro, etéreo, que vem das alturas e nos alveja o peito como um dardo flamejante.  Seja em forma de pensamento, de presságio, ou de uma luta concreta, tensão permanente com força transformadora.

   Peçamos a Deus que nos livre do terror das trevas e da flecha que voa durante o dia. Que a epidemia passe longe da nossa casa. Calcaremos aos pés leões e dragões e nenhum mal nos acontecerá, porque conhecemos o Seu nome e seremos honrados com a Sua salvação.

 

Bendita música

 

Marisa Bueloni

   Não sei viver sem música. Melodias buscam abrigo em minha alma sem cessar. A alma desesperando-se. Digo: música linda, pare só um instante. Mas ela se recusa a obedecer. Atormenta-me com sua beleza sonora. Quero ser profundamente atormentada.

   No aparelho de som, reinicio o CD para meditar e relaxar. Era um dos preferidos do meu lindo, já acamado e fraco, pedindo para ouvir música. Guardei todos os que ele amava. Ouço quando preciso de paz. As notas suaves penetram em cada canto da casa e pousam solenes nas lembranças.

   A música e o canto me embalam desde menina. Penso que me saí bem quando fui aluna do professor Benedito Dutra, no Colégio Assunção, embora temesse as provas de solfejo. Depois, as aulas do professor Egildo Rizzi. Como esquecer a lousa com as cinco linhas amarelas do pentagrama?

   Ainda me lembro do Hino do Colégio, que terminava com versos deste calibre: ”Desta casa também que é um templo / Onde a crença mantém-se de pé / Seguiremos com a força do exemplo / da justiça, do amor e da fé”. Procurei no Google a letra toda e não achei. Quem tiver me mande por e-mail. Muito grata.

   Ah, o Orfeão da Escola Normal! Fui aluna do professor Rossini, na turma da segunda voz e muito assídua nas aulas. Não perdia por nada. Felicidade era cantar o Hino Nacional nas datas cívicas em solenidades da escola. Que orgulho pertencer ao Canto Orfeônico.

   Sempre tive ritmo, boa voz, afinada, o que me levou a aprender violão, por volta dos meus 10 anos. Participei de um grupo de amigas que também tocavam e progredi muito com elas. Autodidata, fui estudando e descobrindo as sequências musicais, as posições e os acordes dos tons naturais.

   A música encheu minha juventude de alegria e de sonho. Apresentei-me em festivais da cidade, cantei com orquestra, com banda, cantei com amigos cantores que também sonhavam em cantar como eu sonhei. Aprendi a compor minha própria harmonia para as músicas e até hoje tenho este abençoado dom. Sabia de cor o repertório dos Beatles, da turma da Jovem Guarda, dos ídolos da minha época. Um amigo músico elogiou meu arranjo para “I can´t take my eyes of you”.

   Amo a música clássica e o canto gregoriano. Mas minha paixão são as guarânias em castelhano. Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra e tantos outros, o dedilhado nas cordas e a força das letras revolucionárias. “Yo tengo tantos hermanos / que no los puedo contar/ Y una hermana muy hermosa/ que se llama libertad”.

   Desde sempre, a música embala a minha vida. Hoje, canto com os meus netos, ensino tanta coisa, tocamos xilofone, compro violinha, pandeiro, para marcar o ritmo das canções. Guilherme gosta desta: “Agora eu era o herói / e o meu cavalo só falava inglês”. Vitor não se cansa de cantar “A canoa virou / foi deixar ela virar...”.

   A música nos ensina muito e traz o sonho a cada momento do dia. “Cantar, e cantar, e cantar / a beleza de ser um eterno aprendiz”. Contudo, vemos nos programas de calouros como é difícil cantar. Ninguém se atreva se não nasceu com esse dom supremo.

    Deus Pai! Eu Vos agradeço pelo dom da música!

 

Santo dos Anjos

 

Marisa Bueloni

   Nada foi tão doloroso para o Brasil, na quinta- feira, como a morte do ator Domingos Montagner, que deu vida ao fundador da Cooperativa Agro-Grotas, na novela de Benedito Rui Barbosa, da Rede Globo. Benedito chorou dando entrevista. Santo dos Anjos brilhou e encantou. Ó, Velho Chico! Tragaste o corpo e a vida de um dos mais promissores atores da dramaturgia brasileira.

   O público espera o final da novela, o desfecho que promete ser justo e feliz, unindo pares e punindo criminosos. Consta que os atores da primeira fase voltarão para encenar os últimos capítulos, poupando Camila Pitanga do sofrimento. Santo e Maria Teresa, o par romântico que nos emocionou durante todos estes meses.

   Se poucos conheciam o seu verdadeiro nome, agora Domingos Montagner se torna inesquecível e imortal. Professor de Educação Física, foi ter aulas de circo para aprimorar sua prática, sua pedagogia. No circo, o encanto de trabalhar com os artistas, fazer o palhaço, representar.

   Uma trajetória como muitas, de tantos que aspiram à vida artística, à televisão e ao teatro, mas tudo de forma muito simples e muito humilde, segundo afirmam os que conheceram e conviveram com Domingos. Era visto no bairro do Tatuapé, onde morava, na Capital. Bom pai, bom marido, bom chefe de família. Bom ator. Boa pessoa.

   Acho que por isso a perda dói tanto. Comedido, simples, sorrindo no seu rosto de bom moço, com aquele jeito de alguém incapaz de uma maldade, de uma grosseria. Algumas pessoas nos passam esta imediata imagem de integridade, esta luz, esta honrada decência.

   O ator protagonizou na vida o que representou na tela. Santo foi procurado por Teresa e Bento, nos episódios em que era dado por desaparecido. Na quinta-feira, o corpo do ator também desapareceu nas águas profundas do rio. Mas a vida não tem o enredo do folhetim, e os índios não estavam lá para salvá-lo. A vida imita a arte, sim, para que nossos sentidos não se percam da realidade.

   Santo dos Anjos está nas alturas. Está na glória dos anjos, definitivamente. Choramos com ele e com Bento a morte do capitão Rosa e do pai, Belmiro dos Anjos. Santo corajoso, que por décadas lutou com a terra e enfrentou o poderio dos coronéis.

   Roga por nós, Santo! Inferniza os políticos de Grotas, Bento! Cultiva a terra, Miguel, ao lado de Olívia. Reza, dona Piedade, acende as tuas velas. Recolhe-te, Luzia, veste teu luto agora, que é de verdade. Força, professora Beatriz, candidata à prefeitura da cidade, na busca de justiça e de melhores condições de vida para o povo.

   Um pequeno grande retrato do nosso país? Uma poderosa família oprimindo os lavradores, impedindo que andem pelas próprias pernas, tirando-lhes o lucro desmedido, perpetuando a seu favor influências políticas e econômicas.

   Ah, Coroné Saruê! Nem o senhor nem dona Encarnação precisaram mandar matar Santo dos Anjos. Ele morreu nos braços do rio São Francisco. Morreu de verdade, para comoção nacional. Morreu como um herói, destes de novela, que nos emocionam e, literalmente, nos fazem chorar.

 

Lá detrás daquele morro

 

Marisa Bueloni

   Venha para casa, que vem chuva forte. Ou melhor,  chumbo grosso. Não posso dizer tudo o que sei. Ninguém acredita. Pegue seu carro, sua mochila, seu terno novo, alguma comida, e traga para cá. Não posso fazer nada a não ser abrigá-lo em minha casa. Venha.

   Falando nisso, em Brasília, recentemente, um terremoto varreu para sempre do mapa a nossa Carta Magna. Foi um furacão daqueles, os ventos uivantes do inacreditável subiram a rampa do Palácio.

   Quero te dizer que nem tudo está perdido. Apesar do planeta decadente e poluído, há uma réstia de dignidade e de esperança aqui e ali. Onde? Não sei.

   Digo-te, meu amor, que os dias passam como se não passassem, que o momento é estático e a penumbra faz sombras nas paredes. Por vezes, teu rosto aparece nelas, límpido e claro. Noutras, é só um detalhe, o recorte da tua boca, teu nariz lindo, o perfil etrusco. No fundo, no fundo, é tua alma que eu busco.

   Tenho vocação para ser triste. O médico diagnosticou tipo “um brasão de família”, certa tendência à melancolia contra a qual preciso lutar sempre. Meu pai andava com um lenço no bolso para enxugar o canto dos olhos, chorava ouvindo “Chico Mineiro”. Herdei de meu pai o gesto emotivo e a tristeza da vida.

   Em geral, acordo com uma certeza: de que tudo vale a pena neste mundo de Deus. Por alguma razão especial, esta geração foi escolhida para estar aqui, neste século da nossa história. A esta humanidade está reservado um conhecimento que abalará os corações.

   Vou morar à beira-mar, ah vou. “Vai nada!”, me aconselha a amiga. “O mar vai subir, é perigoso, agora devemos morar em lugares seguros e altos”. Lembrei-me de uma mulher “sensitiva” que vi na tevê. Contou que morava em Peruíbe, cidade praiana. Teve a visão de um tsunami colossal. Um dia, do nada, apareceu um aviso na tela do seu computador e ela se mudou para Campos do Jordão.

   A vida não é um salto alto, eu sei. A vida é luta. A vida contém uma dose exata de beleza, de alegria e de sofrimento, que é para ninguém enjoar dela. Tem também uma dose intrínseca de esperança. Talvez tenha a sua parcela inevitável de horror. Há os dois lados, que é para equilibrar o ato político de viver.

   Há momentos em que todos os ruídos cessam e o mapa da noite expõe seu desenho mais denso. No entanto, é essa massa inexata e difusa chamada silêncio que se transforma em impetuosa eloquência, se a alma deseja falar.

    Bateu uma saudade funda dele. Destas que fazem o coração ficar pequenininho. Então, era um domingo em que o tricolor ganhou. Eu fui lá, beijei a foto dele e falei, apertando o retrato contra o peito: dois a zero, lindo!

   A vida está ficando cada vez mais complicada. Antigamente, se dizia “para o mundo que eu quero descer”. E agora? Qual é o grito de socorro?

   Lá detrás daquele morro / tem um pé de manacá
Nós vamo casá / e vamo prá lá / Cê quer? / Cê quer?
Ai, meu Deus! Namorar e casar! A noiva fez um vestido e o noivo, decidido, terno branco foi comprar. Namorar e casar. O bolo encomendado, rapadura e melado pra de amor se lambuzar.

   Concluindo, reafirmo que a fé remove montanhas.

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Nada é muito importante

 

Marisa Bueloni

   Num de seus programas, comentando a fala de um entrevistado, Marília Gabriela disse: “Na verdade, com o tempo, vemos que nada tem muita importância”.

   Ah, que alívio ouvir tal pronunciamento! Pois naquela hora, assistindo à entrevista, uma determinada agonia pesava como chumbo em minha alma. Ouvir a afirmativa foi uma redenção. Refletindo no fato de que nada tem muita importância nesta vida, ficamos mais leves, menos tensos, menos ansiosos.

   Nada é muito importante. Nada é tão importante assim. A roupa, a unha feita, o sucesso, o carro, o dinheiro. É preciso tão pouco para viver! Se algo der errado conosco, paciência. Tentemos de novo, aprendendo com nossos insucessos. Cada lição será preciosa, há de nos fazer crescer e aprimorar nossa visão de vida e de mundo. Vasto mundo!

   O empenho constante de perseguir a perfeição em tudo, de estar a postos em todas as horas do dia, nos cansa e nos abate. O efeito é contrário. A ânsia de apresentar uma face animada e solidária 24 horas acaba se tornando um exercício de repetido esgotamento.

   Podemos prestar solidariedade, sim, mas quando solicitada, quando necessária. Antecipar o abraço do auxílio, demonstrando atenção ininterrupta, é algo que irá nos exaurir todas as forças.

   Nada é muito importante. Gravemos esta afirmação lúcida e transformadora. Busquemos o equilíbrio entre erros e acertos, balança vital para nossa paz de espírito. Importante é perdoar a si mesmo, dar um desconto próprio para os destemperos em certas situações e justificar-se com boa autoestima perante os fracassos e perdas.

   Ah! Os ganhos! As conquistas, as ações bem sucedidas! São elas o nosso alento maior, a nossa pura e clara esperança. Bom guardar seus nomes e datas, suas características maravilhosas, como belas efemérides.

   Nada é muito importante. Aprendamos isso, senhores. Uma só coisa é necessária. Ao crente religioso, será a salvação da sua alma. Não haverá algo de maior importância neste mundo. Cada um possui sua escala de valores e se pauta por eles, confiante em seu tirocínio, em seus anos de experiência, em sua plena convicção de certo e de errado.

   Num mundo precário de bons valores, onde escasseiam os exemplos de respeito, generosidade, gentileza e afeto, é alentador pensar que ainda se pode encontrar aqui e ali a abençoada chama que acenda a luz da sabedoria, da inteligência, do prodígio e da bondade.

   Não nos falte jamais a fé, este farol luminoso, lâmpada para os nossos pés. Ela poderá, sem nenhuma hesitação, nos apontar o que de fato é importante. A fé nos sustenta quando tudo o mais naufraga; a fé nos alimenta quando nossa alma morre de fome e de sede; a fé nos faz levantar da cama, sair da depressão, buscar a fonte da nossa essência.

   Nada é muito importante, lembre-se. Não se aflija por pouco. Ou por nada. Sim, todos nós, em algum momento, já nos desesperamos. Avançando na estrada, vemos que não valeu a pena. Fiquemos com esta prece libertadora: nada é muito importante.

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Quem não tem cão...

 

Marisa Bueloni

   Bem, amigos! Aqui vai um texto destes para desopilar a alma cansada de guerra. Se a vaca foi pro brejo, precisamos agir rápido e tomar uma atitude, sabendo que uma andorinha só não faz verão.

   Nunca fui esperta demais e não sei usar direito a expressão “cobra criada”, pois temo ofender alguém. De tudo que já ouvi, fico com aquela frase da qual meu pai gostava tanto: “Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”. Eu achava tanta graça nisso!

   Uma companheira de muitas viagens à praia, pândega até a medula, costumava chamar a atenção de todos, nas brincadeiras, dizendo que quem fala muito dá bom dia a cavalo. Ui! Acho que cumprimentei muitos equinos nesta vida eloquente.

   É bem verdade que o melhor mesmo é cada macaco no seu galho, fala sério. A fim de que não haja confusão nenhuma na hora da onça beber água. E que hora seria essa? Mas tem a outra água, a que o passarinho não bebe.

   Um amigo querido, padre Paschoal Rangel, mineiro, falecido há alguns anos, publicou um livro, Provérbios e Ditos Populares. Segundo ele, “os provérbios populares são oriundos do meio rural, ou seja, são nascidos em meio à gente simples da roça, frutos da observação empírica das pessoas que ali vivem. Nesse meio, existe um grande número de provérbios que tem como personagens os animais, em razão do fácil contato do homem do campo com os bichos, como “cachorro cotó não atravessa pinguela”. Neste texto singelo presto-lhe uma pequena homenagem póstuma.

   Ah, mas por que temos de engolir sapos, às vezes? Tem gente que prefere cuspir fogo. Confesso que já “pratiquei” as duas situações e passei foi muito sufoco. Se cão que muito ladra não morde, é sempre boa a prudência de saber que em boca fechada não entra mosquito.

   Minha mãe gostava de dizer que cachorro de muito dono passa fome. E é verdade. A vida comprova isso. Temos de ter uma direção única, um objetivo e contar com nossa capacidade de realização. E confiar. Mas, se à noite todos os gatos são pardos, não vamos nos preocupar demais com o supérfluo. Trabalhar para o necessário. Afinal, para quem é bacalhau basta. Olha o preço do bacalhau hoje!

   Porém, como burro velho não perde a mania, eu também tenho as minhas. Nem pensar que caiu na rede é peixe. Não! Tem de batalhar muito, ainda que seja preciso receber alguns presentinhos da vida. Sabem como é: cavalo dado não se olha os dentes!

   Juntando um pouco aqui e um pouco ali, se diz que de grão em grão, a galinha enche o papo. Vale para tantas situações da vida! E se dois galos não cabem no mesmo poleiro, digo que dois bicudos não se beijam. Mesmo.

   Se uma vaca voasse, dizia um cunhado brincalhão para ocasiões específicas deste lamento. Sem querer puxar brasa para minha sardinha, eu competia com ele nestes ditos.

   Termino com um provérbio muito precioso, porque hoje eu estava mesmo no mato sem cachorro, sem saber por onde começar, com que texto encantar o leitor e usei de um recurso muito comum, recorrendo ao que já existe e já foi escrito à exaustão. Pois é: quem não tem cão, caça com gato...

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Luzes que se apagam...

 

Marisa Bueloni

   Há uma música linda, de Charles Chaplin, “Luzes da ribalta”, que me toca fundo o peito, o coração e a alma. A tradução da música para o português refere-se às ilusões, às vidas que se vão, às luzes que se apagam com o decorrer do tempo. Vidas que se acabam a sorrir, luzes que se apagam, nada mais.

    Diz a letra também: o que passou não voltará jamais. No retrovisor do tempo, identifico tantas pessoas admiráveis, consumidas no amor, almas devotadas que partiram acreditando no que faziam. Vidas cheias de fé, ainda que muitas sentissem apenas o vazio e a escuridão dentro de si.

    Na minha carruagem de sonho, refaço um trajeto amado, a mocinha descendo a rua Governador rumo à faculdade. Havia no céu uma estrela enorme e inquietante no início do inverno, que a seguia até a entrada do prédio. Deixava lá fora a estrela peregrina. Terminada a Pedagogia, o curso de Orientação Educacional. E depois de casada, a faculdade de Jornalismo.

    A alma sempre ávida de conhecimento queria estudar, estudar, estudar. Nunca parar de estudar. A Filosofia a chamava nos livros e nas horas de profundos conflitos existenciais sem respostas, sem janelas, sem portas e sem passagens secretas. O secreto ficou guardado no terraço florido e nos bancos de madeira com pés de ferro. Num baú imaginário, de onde ela ainda pretende tirar coisas boas.

    Para que chorar o que passou, lamentar perdidas ilusões? – pergunta a letra dolorosa e a melodia mais ainda. Consolador será saber que nossos ideais renascerão em outros corações. A roda da vida deve girar, transformando e criando novas formas de amor, de contato, de bondade, de esperança. A tecnologia não substituirá o abraço ao vivo.

    A juventude é um sonho que as mãos querem segurar. Mas ele precisa ser vivido, buscando cumprir-se a cada momento, apesar da dor, da luta e do sofrimento. “Ninguém quer a morte, só saúde e sorte”, diz outra canção inspirada. Inspira-nos o canto das alvíssaras, anunciando a alegria. Mas existe o contrabalanço da tristeza, da amargura e da solidão. O que passou está guardado na caixa recheada de cartas maravilhosas, unidas por um laço de fita; em alguns cartões postais preciosos; nas fotos emolduradas nas paredes; na sala de jantar hoje silenciosa; nos porta-retratos tão vívidos e tão eternos.

    Vidas que se acabam a sorrir. Luzes que se apagam, nada mais. Quantos sorriram até o final de suas existências, sabedores da morte iminente, pegando em nossas mãos trêmulas, antevendo o adeus? Demos o melhor de nós a cada um, avó, pai, mãe, cônjuge, parente, amigo. A muitos acompanhamos solidários na amizade, quando foi preciso o afeto e a presença.

    Não nos falte jamais a certeza de termos sido companheiros e generosos, nesta solicitude extremada que a vida nos pede em algumas horas cruciais. Ontem, vi vidas se acabando e sorrindo, luzes apagando-se aos poucos num longo trajeto final; outras que se precipitaram na partida, abrupta e fatal. Hoje, sou eu, faço parte de uma geração que lentamente se apaga e fenece. À luz de profecias promissoras, ao som de “Luzes da Ribalta”.

 

O amor não tem idade

 

Marisa Bueloni

   Uma amiga querida, que já passou dos sessenta, está amando de novo e me escreveu contando que vai se casar. Já enterrou dois maridos, mas encontrou pela terceira vez um grande amor. Faz anos que não a vejo, mudou-se para outro estado e nos comunicamos pela internet.

   Ela andou mandando fotos. Rejuvenesceu uns 20 anos. Disse que não fez plástica, e que a boa forma se deve ao amor. A pele está um viço, os olhos brilham e ela ostenta aquele inconfundível e invejável ar de felicidade, a alegria típica dos apaixonados.

   Se o amor faz bem, minha amiga é a prova viva disso. Compartilha comigo frases românticas, imagens de flores, estrelas e corações. Ah, o coração! Como não vibrará dentro do peito de quem ama pela terceira vez e diz sentir o colossal ímpeto da adolescência, o mesmo arrepio na espinha e a mesma paixão avassaladora?    

   Além de voltar a fazer caminhadas, cuidar da saúde e da alimentação, ela me conta que foi às compras. Em Paris. Lá renovou parte do guarda-roupa e trouxe lingeries com rendas que são puro sonho. Após quase 10 anos, deu-se a este luxo, que considera fundamental na nova fase de sua vida.

   Ambos vivem a melhor idade, com a melhor das intenções. Ele também é viúvo e planejam o casamento  com muita responsabilidade. O dele será o segundo, o dela, o terceiro. Para eles, a vida é eterna. Sim, Deus seja louvado em toda a Sua glória. Sobretudo, pelas glórias do amor.

   Decidiram que nada mudará em suas vidas e cada um viverá na sua própria casa. Para não mudar hábitos, rotinas e demais afazeres diários de cada parte. Ele pega netos na escolinha, ela trabalha com arte, viaja, e tem muitos almoços com clientes.

   Sábia decisão? Sim, mas ele tem uma linda casa de campo onde passarão os finais de semana, os feriados, e viajarão juntos sempre que possível. O casamento será com separação total de bens, pois ambos são ricos e assim tranquilizam futuros herdeiros. Mas o anel do noivado é algo inatingível para a maioria das mulheres mortais.

   Perguntei sobre a cerimônia religiosa, uma vez que são católicos, frequentam os sacramentos e,  também por isso, julgo que estão dando o passo certo nesta decisão de se unirem em matrimônio. Não quis revelar o grande segredo que será o vestido rosa pálido, longo, com mangas transparentes, “para cobrir um pouco os braços, não muito apresentáveis na nossa idade”. Muito bem. Essa minha amiga sabe tudo.

   Mandou foto dele, lembra um pouco o ator Paul Newman, já grisalho. E com aquele porte de príncipe que chegou mesmo num cavalo branco. Qual princesa resistiria? Disse que o conheceu em casa de amigos e começaram a trocar e-mails. O que mais a encantou foi que ele nunca escreveu uma frase com “kkkkkkkkk”. A ausência absoluta desta sequência gráfica acelerou o romance.

   Como sabe do meu medo de avião, quer mandar um motorista vir me buscar para o casamento. E me trazer de volta a Pira. Imagine só. É lonjura demais. Agradeci, mas recusei. Contudo, acho-a tão maravilhosa e humana (faz muitos trabalhos de filantropia e caridade), e sinto vontade de aceitar.

   Ah, a lua de mel será em Dubai.

 

No baile da vida

 

Marisa Bueloni

   A vida me ensinou a reconhecer os erros e a aprender com eles. Esta é uma lição infinita porque erramos todos os dias e, às vezes, o estrago é irreversível. Mas, ai, por que não podemos, apesar de fortes no aprendizado, transgredir só um tiquinho?

   Lembro-me de um bailinho da juventude, o animador anunciou no microfone que “agora é dama tira”. Muita gente não sabe o que é isso. É quando, num momento do baile, é permitido à dama convidar o cavalheiro para dançar. Imagine se nos meus 16 anos iria perder essa!

   Minhas amigas não se arriscaram. Decidida, fui logo convidando o moço mais lindo do salão. Ele agradeceu, estava vindo de uma pescaria e lamentava por cheirar a peixe. Falei que não me importava. Jura? Nem um pouco. Então dançamos, foi bom demais e nos despedimos com ele dizendo: “Quero dançar com você de banho tomado, na próxima vez”. Tá bom.

   No baile da vida, temos escolhas a fazer e coisas a dizer. Você já se abriu de verdade, caro leitor, cara leitora? Refiro-me a questões de toda ordem, sejam afetivas ou não. Já fez um desabafo necessário, daqueles de ficar mais leve, depois de pôr para fora algo que lhe pesava terrivelmente sobre os ombros, ou sobre o coração?

   Talvez a expressão correta não seja esta, “sobre” e sim “dentro” do coração. Ah, o que todos nós guardamos neste valioso órgão propulsor! Costuma-se dizer que “Deus sonda os corações”. Só Ele conhece-nos por inteiro, as motivações, os segredos, as dúvidas cruéis, nossos desejos, sonhos e esperanças.

   Dia destes, ouvi no rádio: “A ética é filha da humildade, que é irmã da sensatez”. Os antigos diziam que “bom senso e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. Vi uma reportagem na tevê, onde a mãe dizia curar a gripe da família toda com uma bela canja.

   O que não faz uma abençoada sopa para o inverno!  Faço-a com peito de frango mesmo. Minha sogra fazia a legítima, com galinha. Fica um pouco mais substanciosa e com uma cor linda, meio amarelada, saborosíssima! A canja que aprendi com minha mãe sai boa também, sobretudo se acrescento pedaços de mandioca.

   Bem, mas o que têm a ver a prudência e a canja com desabafos do coração? Tudo a ver. A canja serve de unguento alimentar para a latejante chaga, depois de uma mal sucedida abertura de alma. Cura-se a dor com um bom prato da sopa fumegante. Queijo parmesão ralado por cima e torradas com creme de ricota. Já a prudência, essa é soberana em toda e qualquer questão.

   Bem, a vida é muito mais que um prosaico bailinho na hora da “dama tira”. Isso é muito pouco para os atrevidos. Há outras ousadias bem mais atraentes, sem que resultem num Boletim de Ocorrência. Podemos ser prudentes até mesmo na audácia de uma loucura, ou nos momentos solenes e belos em que julgamos seguir a nossa estrela. Onde está ela?

   Então. Como tenho uma alma com tendências ligeiramente transgressoras, escolho sempre o caminho perigoso. Meu lindo me alertava: “Cuidado, você ainda vai cair do cavalo”. Justo eu, que nunca pratiquei esportes equestres e nem sei cavalgar...

 

Luar na cozinha

 

Marisa Bueloni

   Peço licença para uma revelação: viver é um ato de primeira grandeza. Ainda que o mundo venha a ruir completamente, a alma cheia de amor estará a salvo. Viver é um ato de extrema gratidão, quando se ressurge das cinzas após três meses com gripe, uma atrás da outra, e dores supostamente relacionadas à coluna. Rever e abraçar amigos – que bem nos faz!

   Quero pensar em ideias inovadoras e discutir o futuro. Que a velharia da mesmice e suas variantes não nos contaminem mais. Abaixo o senso comum, “aquela velha opinião formada sobre tudo”, os preconceitos tolos, as conjecturas ancoradas em premissas pouco consistentes ou sedimentadas em experiências negativas.

   Então, em mágico momento, encontro a graça plena na minha cozinha. Vejo a lua refletida no balcão de granito, na extensão da pia. O reflexo atravessa o blindex da janela. A lua se projeta inteira, desenhada no granito. Toco no satélite da Terra e sonho.

   A imagem que ali se forma arrepia-me intensamente. Em misterioso êxtase, vejo nossa galáxia, o sistema solar, os planetas orbitando e me recordo das visões que tive na chácara do Campestre, sentada num banco próximo da varanda, vasculhando o céu noturno.

   Tomo comigo a lua na pia e vou cuidar de outras coisas. É noite, mas a mulher não para nunca, porque há o que fazer dentro de uma casa. Nós, mulheres, possuímos um dom natural para isso. Ninguém varre o chão melhor que uma mulher. Ninguém organiza louças, talheres, toalhas e demais objetos como ela.

   E a cama arrumada? Mãos femininas alisam lençóis e estendem colchas com maestria. Afofam almofadas, perfumam ambientes, fazem a beleza aparecer. Quem pode apresentar uma bela sala de jantar senão a dona da casa?  A mesa abençoada de tantas reuniões familiares. Só ela conhece e nutre profundamente este espaço sagrado.

   Uma casa brilha nas mãos de uma mulher. A “rainha do lar” tem sob seu comando cada gaveta, cada quadro na parede, o cheiro bom da comida sendo feita, a roupa no varal, a limpeza e a ordem. Se não for ela a cuidar pessoalmente, é outra mulher, a empregada, laboriosa trabalhadora sem descanso. Como a maioria das mulheres.

   Homens há que também se interessam pela arrumação doméstica e já vi grandes talentos. Entendem perfeitamente destas tarefas e as executam bem. Certamente, sentem-se reconfortados se contam com a ajuda feminina.

   Andando pelos cômodos, guardando coisas nos seus lugares, volto para a lua redonda que brilha no balcão de granito. Quero subir num raio deste luar e fugir. Para alguma Pasárgada querida, onde também serei amiga do rei. E de lá mandar lembranças para todos. Haverá internet? Aquele abraço. Piracicaba continua linda?

   Um abraço apertado aos amigos queridos. Aos leitores deste espaço onde derramo minha alma semanal. Há pessoas incríveis neste mundo e fariam muita falta se aqui não habitassem.

   “Fique com Deus!” – escreve sempre um amigo, despedindo-se no e-mail. Fiquem com Deus todos vocês. Sejam abençoados os humildes, bem-aventurados os construtores da paz, consolados sejam os aflitos.

   E eu fico por aqui, à espera da noite, para ver o luar na cozinha.

 

Teoria da dor

 

Marisa Bueloni

   A dor é você quem faz – Se fosse possível “criar” minha própria dor, seria bem leve e suave.

   A dor é uma ilusão – Não é. Ninguém “sonha” com a dor e ela não é uma quimera. Não tem como ser algo “falso”. Ela existe e ataca com força. Deveria ser substantivo concreto.

   A dor santificaDepende. Há quem acabe oferecendo a sua dor para as almas do Purgatório, para a conversão dos pecadores, para alcançar uma graça e muitos as têm alcançado neste oferecimento de vida.

   A dor é um fantasma que assombra – Ela não só assombra. Ela também dói. Ela é muito mais temida do que uma assombração.

   A dor está no cérebro - Pode ser. Quando alguém está com uma dor de cabeça lancinante, a dor está literalmente no cérebro. Ou em qualquer outro lugar do corpo. Conhecemos a teoria de que nada chega ao cérebro sem antes passar pelos sentidos.

   A dor é a prova de que se está vivo – Ainda bem! Sem dor, estamos mortos. Bela vantagem. Todos querem estar vivos e, se possível, sem dor.

   Dor de barriga é sinal de que você tem barriga – Ouvi muito isso, como um gracejo, uma piadinha, durante um bom tempo da minha infância. Até ser levada ao médico e tratada.

   A dor nos une – Sim, a dor tem o poder de juntar almas dolorosas em volta de uma mesa e ver quem sofreu a maior delas nesta vida. Muitos apostam na dor de cálculos nos rins. Seria a pior de todas. Uns dizem que é a dor de ouvido. E, para as mulheres, tem a dor das contrações do parto.

   A dor é a purificação da alma – Também creio nisso. Mas, quem sabe, existem outras formas de se purificar, sem tanto sofrimento físico?

   A dor é sábia – Sim, ela sabe como e onde doer. Sabe escolher os horários também. De madrugada, de preferência. Nos fins de semana, quando se procura o médico e ele viajou. No dia de Natal. Quando você acha que esta sabedoria da dor vem em boa hora, então, é hora de lutar contra ela.

   A dor é uma ficção – De que tipo? Científica?

   É preciso sentir dor, para dar valor à vida – O mundo ainda vai acabar com tanta filosofia. E vai ter de engolir mais esta.

   A dor é democrática - Se alguém quiser fazer da dor um instrumento político, ao menos lute para encontrar o alívio para ela. Votarei no primeiro candidato que prometer “acabar com a dor.

   A dor é uma bênção – Tente ser “abençoado” por uma dor de hérnia de disco.  Esta é uma falácia que dispensamos rapidinho. Cadê a verdadeira bênção?

   A dor é passageira – Ela é a passageira, de fato, fica ao nosso lado, no banco do passageiro. Ela nos acompanha nas viagens, é a passageira da nossa existência.

   Esqueça a dor – O que fazer? Tentar esquecer a dor ou bater em quem nos sugeriu isso?

   “Dor de barriga não dá só uma vez” – Ditado perfeito.

   A dor passa quando você não pensa nela – Conta outra. A dor não se “pensa”; a dor se sente. Quanto mais você procura “não pensar”, mais dói.

   A dor é uma fantasia - De quê? De Carnaval? Encontrem uma fantasia de dor, que eu quero vestir e ver se dá pra sambar com ela até me acabar...

   A dor é imaginária – Tente imaginar uma dor. Nunca faça isso, pelo amor de Deus!

 

Anjos, passarinho e rosa

 

Marisa Bueloni

   Ando vendo coisas espantosas que me causam um arrepio terrível, embora algumas cenas sejam absurdamente inacreditáveis e belas, como a dos anjos com asas. Era madrugada, noite sem estrelas, céu de chuva, quando saí lá fora na rua para ver o tempo.

    Espiei o casario dormindo, ouvi o silêncio que amo tanto. Nestes momentos, capto a poesia do invisível. Então, eu os vi. Dois anjos. Estavam no meu pequeno jardim, onde estão plantadas apenas duas pleomelis e três podocarpus.

    Perguntei o que faziam ali. Apresentaram-se como  anjos do condomínio, guardavam as casas e estavam de vigia. E por que no meu jardim? Porque rezo muito, porque os invoco sem cessar, peço proteção aos que amo e então resolveram fazer um plantão especial para mim.

    Expressei-lhes minha honra por esta deferência, tentando me aproximar. Desapareceram imediatamente. Passei as mãos nos arbustos das pleomelis, busquei algum sinal do que vira, e um ruflar de asas causou um movimento do ar à minha volta.

    De outra feita, foi no trânsito. Estava eu dirigindo numa rua de grande movimento e o farol fechou. Abriu, fechou de novo e a fila parada. Foi o tempo suficiente de um passarinho pousar na janela do carro. Olhou-me fixo e perguntou se eu não estava cansada. Sim, sim, muito. O trânsito estava lento demais, eu gripada, fraca... Com o biquinho, ele me indicou o céu azul.

    Olhei para cima e as alturas se abriram. Apareceu uma paisagem verdejante, uma campina, com algumas casinhas solitárias junto de árvores frondosas e um riacho cujas águas brilhavam como o sol. Ele assuntou se não desejo voltar para o campo, que lá é o meu lugar. E saiu voando entre a fila de carros.

     Passarinho, passarinho! Veio até minha janela, para me inquietar. E me fazer sonhar. Olhei mais uma vez para o alto e a paisagem era o céu azul de novo. O farol abriu e eu prossegui, com algumas lágrimas escorrendo pela face.

    A visão mais recente foi em casa, no computador. Comecei a escrever este texto e notei que no monitor se formava uma imagem. Vade retro! Ao me levantar da cadeira para pegar água benta, uma voz suave me chamou pelo nome. E na tela apareceu uma rosa. Amo as rosas.

     Transida de medo, meu olhar se fixou na flor. “O que você quer?”, indaguei. Não queria nada, apenas manifestar seu apreço. Todo dia me vê batucando no teclado, respondendo e-mails, postando no Facebook, cumprimentando aniversariantes, pesquisando temas no Google, procurando fotos e matérias, conversando no Messenger com amigos. Perguntou se não me canso. Jamais. Este é o pleno exercício do amor. Do amor às pessoas.

     Anjos, passarinho e rosa! Ah, meu Deus, o que é isso? A poesia tem me visitado fisicamente, o sonho se materializa diante dos meus olhos e nada fiz para merecer tanta honra. 

   Voltem, anjos amados, vigiem no meu jardim. Volta, passarinho. Vem pousar na janela do carro novamente.  Ah, rosa do computador! Se aparecer de novo, tenho algo especial a lhe dizer...

 

Sob as graças de Leão

 

Marisa Bueloni

   Recentemente assisti na tevê a um debate sobre astronomia e astrologia. São coisas diferentes, claro, e a maioria das pessoas se interessa mais pela consulta aos astros, buscando nos arcanos algo que possa mudar suas vidas.

    Lembro-me de um querido e saudoso professor de Psicologia. Argumentava que o horóscopo tem o poder de acertar quando diz: “Hoje, você vai sair à rua e encontrar alguém”. Sim, é grande a probabilidade de algo assim acontecer...

    Sei de pessoas que não saem de casa sem antes consultar os prognósticos para o seu signo. Enfim, cada um acredita no que quer e, se lhe faz bem, que mal há? De minha parte, confesso que não leio mais horóscopos. Há muito tempo. Confio n´Aquele que é a minha cidadela e meu refúgio. A Ele entrego minha vida.

    Abençoado salmo 91! “Podem cair mil à tua esquerda e dez mil à tua direita; tu não serás atingido”. Aquele que acredita no Senhor e conhece o Seu nome estará a salvo da flecha que voa durante o dia, da peste que ronda as casas, porque o Senhor o tem na palma na mão. Quando invocar o Senhor, terá resposta.

    Assim, passo longe das adivinhações de toda sorte, buscando sempre o auxílio do Onipotente, que na angústia estará ao nosso lado, para nos salvar e nos honrar. O Senhor nos saciará com longos dias e nos mostrará a Sua salvação. Esta é a minha mais devotada crença.

    Contudo, dia destes, li de passagem algo que me inquietou. O texto versava sobre saúde e conceitos preciosos, mas a frase não parecia nada científica ali. Afirmava que os leoninos sofrerão sempre da coluna e do coração. Bem, sou de Leão, já estou premiadíssima com três cirurgias de coluna e faço jus ao apregoado.

    Até que, recentemente, o coração deu o ar de sua imensa e assustadora graça. Noite quieta, em casa, começou a bater forte demais. Foi um atropelo. E falhava na louca corrida. Tum, tum, tum, uma falha. Tum, Tum, tum, outra falha. E assim foi, até que busquei ajuda, era uma hora da manhã. No hospital, a bondade do médico, a sugestão de que poderia ser tudo de fundo emocional. A enfermeira me deu um comprimido de Diazepan. De volta para casa, dormi feito uma pedra.

    Não sei se pedra dorme, mas meu corpo era uma rocha pesadíssima, necessitando de repouso. É tão bom não ver a noite passar e despertar com a luz do dia se dividindo na veneziana da janela! A manhã nasceu tão suave e tão doce dentro do meu quarto, andando silenciosa e aconchegante pela casa.

    Um amigo querido, também contemplado com problemas na coluna, sofreu recentemente um enfarte e me contou que é de Peixes, contrariando a tese dos leoninos. Parece que coluna e coração atacarão indistintamente, não importando o mês, o dia e a hora do nascimento da pessoa. Todo tipo de doença será enfrentada por todos nós, uns mais, outros menos, dependendo da predisposição de cada um. Assim é. Peçamos forças para as arritmias da vida. Bate, coração! Afinal, enquanto bates (por amor?), está tudo bem.

 

Recomeçar

 

Marisa Bueloni

   Às vezes, somos obrigados a percorrer um escuro corredor dentro da nossa alma. Conhecemos o caminho, pois já passamos por ele outras vezes, mas é preciso tatear na escuridão para atravessá-lo e chegar à luz.

    Quantas vezes aprendemos de novo? Não sei. Contudo, o coração tem uma capacidade imensa de recomeçar, de se renovar e buscar saídas. Virá desta gênese contínua nossa força suprema, o revestimento do qual nos fala a Carta aos Efésios, quando a fé nos chama pelo nome.

    Percorrer o caminho da noite escura é para os de espírito intrépido. A mata misteriosa tem de ser vencida com a coragem e a inteligência. Mas, sobretudo com a fé. São muitos os portões e umbrais a serem transpostos, até que a alma se sinta em paz.

    Na vastidão desta noite, busco a sétima estrela e seu brilho incansável. Vigio o suficiente para ter em mãos um pouco das bem-aventuranças deste mundo, se é que ele ainda dispõe delas. Se há escassez, nós as cultivamos por nossa conta, como um estoque precioso, tal as belas lembranças guardadas com zelo apostólico.

    Lembranças - estas sim valem a pena. Além delas, prezo a felicidade e a bonança de certos momentos. É aproveitá-los até as últimas consequências. Pode ser um maravilhoso e perfumado chá de maracujá, maçã, canela e gengibre, uma música romântica com a orquestra de Ray Conniff, um creme hidratante ao qual a pele agradece.

    Aos poucos, a bruma sombria vai se dissipando e, de um postigo obscuro e triste, surge a flor radiosa da manhã. Assim como a sentinela espera pela aurora, assim é a alma à espera da luz. No espaço entre a treva e a claridade, o coração faz as suas descobertas.

    Daí em diante, é território sagrado. Ninguém ouse perturbar o conhecimento adquirido nas agonias de quem espera. Se as certezas começam a cair uma a uma, surgem dezenas de outras verdades dignas de crédito. Ainda que não se sustentem de início, vão se tornando sólidas à medida que o sofrimento dá lugar à lucidez.

    Lúcida é a vida de quem conquistou a própria serenidade, vencendo a densa mata do medo e do desconhecido. Não sente solidão, sabe conviver consigo mesmo, ama o que possui e não se apega a nada mais. O cotidiano é administrado com paciência e aceitação.

    A noite escura vai ficando para trás, a sensação de plena liberdade e de confiança reforça o corpo e um sangue renovado corre pelas veias. O pior já passou. Estar de pé e caminhar tornam-se a maior das glórias. Há gosto em se vestir, dar uma volta de carro, fazer compras. É a redenção de todas as lutas.

    Belo é vencer a própria dor. Não há nada mais profundo, mais arrebatador e mais digno. O sofrimento traz cicatrizes fundas, mas compensadoras. As lágrimas molham o travesseiro recheado de sonhos, mas o sonho está ali, remanescente das duras batalhas.

    Por pior seja o luto na alma, por mais lancinante seja o arrependimento do que se quer esquecer, a vida continua lá fora à nossa espera. Feliz de quem vai ao encontro dela no rastro da esperança e permite ao coração recomeçar.

 

Fé e coragem

 

Marisa Bueloni

   Ouve-se dizer que, em determinadas situações, temos de ir com a cara e a coragem. Não é raro acontecer de faltar as duas, a cara e a coragem. Cada um sabe como foi enfrentar um momento difícil, tentando reunir forças para suportar. Só Deus sabe!

    Ao me deparar com algo penoso, ou em situações de contenda, vou com a fé e a coragem. Engulo em seco, conto até dez, olho em volta, tento me controlar e ser educada até a página 12. Quando não dá mais, é soltar os cachorros de leve e esperar a próxima cena.

    Contudo, aposto sempre na conciliação, no diálogo, embora existam pessoas refratárias a ele e com grandes dificuldades de comunicação. Na filosofia da paz e do bem, são merecedores do nosso respeito e da nossa oração diária.

    A Palavra diz que devemos amar os nossos inimigos e rezar pelos que nos perseguem. Ah, isso não é nada fácil. Sempre fui pessoa profundamente religiosa. O exemplo veio dos meus pais, vendo-os rezar o rosário de joelhos, olhando para as imagens dos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

    Ficava ali, ao lado deles rezando também. Depois, a primeira comunhão, a Eucaristia recebida com a alma em chamas, achando que um anjo viria segurar a minha mão. Fui também Cruzadinha de Jesus. Ó, quanto rezamos o terço conduzido pela irmã Gema! Pertenci à Juventude Franciscana. Saudades de frei Saul, dona Emilinha e dona Orlandina, nossos amados mestres! A Ordem Terceira e a espiritualidade franciscana me guiaram pela vida afora.

    De todo este ideal voltado para a humildade, o serviço e a caridade, ficaram algumas importantes lições de vida. Em cada enfrentamento, em toda situação, São Francisco surge em minha frente, com seu hábito marrom, sua doçura e sua beleza. Sim, mestre amado! Pedir ao Senhor para sermos instrumentos de paz!

    Quero repetir aqui os versos da linda oração franciscana: “Onde houver ódio que eu leve o amor. Onde houver ofensa que eu leve o perdão. Onde houver discórdia que eu leve a união. Onde houver dúvidas que eu leve a fé. Onde houver erro que eu leve a verdade. Onde houver desespero que eu leve a esperança. Onde houver tristeza que eu leve a alegria. Onde houver trevas que eu leve a luz. Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado, compreender que ser compreendido, amar que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se vive para a vida eterna”.

    Viver este evangelho franciscano significa fé e coragem. É ter a plena convicção de que apenas o amor pode salvar este mundo. O amor que perdoa, dissipa as trevas, rompe com a tristeza, triunfa na esperança, faz brilhar a verdade, traz alegria e luz! O mundo seria melhor, mais justo e mais humano se nos espelhássemos no exemplo de Francisco de Assis, esse homem revolucionário.

    “Simples como as pombas e prudentes como as serpentes”, diz a Palavra. Com fé e coragem, vamos longe. Não há limites para o coração que se dispôs a amar, a seguir o Mestre e ser instrumento de paz.

 

 

Um sentido para a vida

 

Marisa Bueloni

   Peço licença para escrever um pouco sobre um tema que me inquieta eternamente: o sentido da vida. Já o  abordei algumas vezes e tenho consciência de que nunca o esgotarei completamente.

    Convido o caro leitor a praticar comigo o exercício sublime de encontrar este sentido. Enquanto escrevo, meu coração transborda de amor, de generosidade e de bondade. Creio que o estado de graça se parece com isso: esta leveza, esta beatitude mística, esta calma musical que escapa dos fonemas.

    As palavras. São elas as responsáveis por tudo. São as culpadas de todas as coisas, as orais, as pensadas, as escritas e as ditas em momentos não muito apropriados. Fazer o que, depois que as proferimos?

    Com humildade, pergunto o que seria de nós sem as palavras, sem um digno alfabeto. Há um sentido para o que escrevemos e o que falamos. Cada letra terá seu peso e sua magnitude num universo de significâncias.

    Chego a pensar que o sentido da vida está nas palavras. Delas decorre o que acontece. Se nada digo, reina um mutismo instransponível, latência de possibilidades. Por isso, falamos, escrevemos, redigimos, nos comunicamos. Alguma inspiração subsiste em nossas almas para que façamos isso todos os dias, sem nos cansar.

    Para que a vida tenha sentido, para que haja um “fiat” em cada vocábulo, é preciso o cultivo das frases que integram ideias. Desejo que o leitor encontre sua palavra e seu sentido. Se me perguntarem qual a mais bela do dicionário, diria que é “liberdade”. Mas há outras de igual beleza: justiça, amor, felicidade, paz, lucidez, fé.

    A palavra tem o poder de construir universos, pontes, catedrais e casas para morar. Ela faz transbordar os rios, as lutas, os sonhos. Mesmo no mais absoluto silêncio, encontramos a palavra e sua força.

    É pela palavra que eu digo “eu gosto de você” e o profundo “eu te amo” – ainda que o outro não acredite. Ou ainda “eu espero o seu abraço”. Há abraços curativos e enquanto ele não chega, ficamos à espera de um sinônimo para acalmar o coração.

    O sentido da vida está no bem que fazemos, nas bênçãos que proclamamos, nas graças que pedimos, na fé que determinamos. Nada disso teria sentido sem as letras benfazejas do afeto e do amor, sem o acento tônico da sensibilidade e da inteligência, sem a magia romântica da beleza junto de nós.

    Um dia, li uma frase assim: “o amor canta ao nosso redor”. E me encantei com ela para sempre. De vez em quando, faço questão de recordá-la em meus textos, porque encontro um sentido para a vida quando a celebro.

    Eis a mais bela celebração. O amor que canta ao nosso redor todos os dias, cântico divino. Vamos morrer procurando o que nos dê esperança. De esperança vivemos. De esperança nos nutrimos. De esperança morremos.

    Se um dia tudo se acabar de repente, restará a palavra. Haverá um vocábulo correto e insubstituível para o adeus final. Não sairemos daqui calados, ó não! Nossa alma, errante ou segura do caminho, há de continuar procurando o segredo, o mistério, talvez nos braços do Pai que nos ensinou a buscar um sentido para a vida.

 

A parte que nos cabe

 

Marisa Bueloni

   Permita-me o leitor uma poética e tímida colcha de retalhos nesta crônica semanal. Praticar o sonho como exercício de afeto, integridade e beleza.

         Meu pai enrolava entre os dedos um cigarro de palha caprichoso. Moviam-se ali tantos segredos daquele fumo sempre bem cheiroso. Meu pai me oferecia um pedacinho do fumo preto para que eu cheirasse. “Faz espirrar!”, dizia com carinho, esperando que em seguida eu espirrasse. E num espirro, a saudade bate. Meu coração mais uma vez se abate e nas lembranças, triste, me retiro. Ó pai querido, não me queres triste. Posso senti-lo, desde que partiste. Quero espirrar... e só suspiro!..

        Se o céu desabar, não haverá como sair de baixo. Feliz de quem construiu seu próprio refúgio dentro do coração. É coisa espiritual e não se compra com dinheiro do mundo. Não é coisa física, tipo uma construção segura, senhores.  Vai muito além da nossa vã filosofia.

        Ofereço-te meu ombro, meu assombro e minha amizade. Fica por conta dos velhos tempos e da saudade.

        Vá lá. Ainda estou nocauteada de sonho. Mas também indignada. As coisas dão uma volta muito longa para chegar onde desejam. Dona Vida é cheia de nove horas, reparou? Ela se adianta, se atrasa, chega no meio da festa e, às vezes, sai de fininho. Ninguém pode abrir a boca. Resta um caixão tristíssimo, flores de um perfume ruim, uma cova na terra, a conta maior que tiveste em vida.

        É de bom tamanho, nem largo nem fundo. É a parte que nos cabe neste latifúndio.

        Durante a confissão, num momento inspirado, em que os santos nos altares pararam para ouvi-lo, o frei disse: “Minha filha, Deus conhece o barro de que somos feitos”.

        As coisas da Terra são sempre muito sombrias. Devem ser mais belas e mais alegres as do Céu. Buscai as coisas do Alto. É para as alturas que dirijo meu olhar solene, à espera de solenidades.

        Na vertigem da vida, quero a voragem do que não acontece. Do sonho não realizado. Da sorte que nunca tivemos. Do concurso que não ganhamos. Do encontro jamais tido. Do beijo não dado. Dá para entender? Melhor o mistério eterno, que a revelação absoluta, escandalosa e cruel. Essas deixam marcas e a gente tem um medo colossal delas. Ou não?

        Declaração de amor em tempos de violência explícita: Pare com isso ou eu chamo a polícia!

        Mais ali na frente, naquela curva, haverá uma rosa orvalhada. Será que chego lá? Perdida de amor, pergunto: Deus, por que fizestes tudo isso, assim, sem ao menos nos avisar?

        Sabe quando a visita já acabou? Despedimo-nos e paramos um pouco ali fora, na rua? Aquele restinho de conversa não é sempre o melhor? Melhor e mais profundo do que tudo o que foi dito lá na sala.

        Ocê caiu nos braços de Morfeia e eu, que não sou besta nem nada, de Morfeu. Meu! Eita deus dos bão! Ele vem alisano a gente, fazeno uns cafuné, começa lá pelos pé. Né? Aí, vai subino, subino e quando a gente vê, a gente tá durmino!...

        Uma vez, quando a manhã se abria, me fechei. Foi das piores coisas que fiz na minha vida. O coração não pode se fechar. Nunca. Nem um dia sequer. Não é verdade, meu anjo?

 

Se o amor chegar...

 

Marisa Bueloni

   Se o amor chegar, devo dar bom dia? Perguntar como vai? Como nos comportar na iminência do amor bater à nossa porta? Abro, peço que entre e mando sentar? O que vestir para receber o amor que chega sem avisar? E a emoção seria diferente se ele avisasse? O amor nos enche de perguntas.

    Ninguém gosta de receber visita inesperada. Podemos ser pegos de surpresa e estarmos com a tal roupa de ficar em casa, aqui já cantada em prosa e verso. Uma vez, fui visitar uma pessoa e toquei a campainha. Ela estava com os chamados “bobes” na cabeça, tudo enroladinho. Entreabriu a porta, meio que se escondendo, e sumiu. Reapareceu gloriosa. Foi tirar aquilo e escovar os cabelos.

    Como havia intimidade entre nós, ela poderia ter me atendido como estava, eu não iria reparar, imagine só. Mas aí entra uma coisa chamada “vaidade”. E todos nós queremos ser pegos arrumados, bonitos, apresentáveis.

    Será que o amor me pegará arrumada, bonita e apresentável? Não sei. Terá o amor um jeito pessoal de se fazer anunciar? Dona Marisa, tem um ser aqui na portaria perguntando se a senhora pode recebê-lo. Quem é? Ele disse que é o amor. Pode autorizar a entrada.

    E aí, o amor chega. Devo reconhecê-lo de pronto, pois é alguém de meu conhecimento, o maior e o mais belo de todos os amigos. Gêmeo do coração, vizinho íntimo da alma, dono do corpo e dos sentidos. Beleza infinita que até hoje ninguém conseguiu explicar. Sim, transcende a tudo o mais, tem permissão para invadir a casa, o coração, e proporcionar noites em claro.

    Amor é coisa séria, profunda demais e, se merecer privar de nossa intimidade, seja recebido com honras, com uma mesa farta de iguarias regadas a promessas. Aquelas que fazemos com um olhar 43, no momento mais afetuoso da nossa vida.

    Se o amor chegar, quero recebê-lo com um buquê de flores do campo, ou um ramalhete de rosas. Entra, amor. A casa é sua. Visto uma roupa de festa. Ou um juvenil vestido de organdi cor-de-rosa, com um laço atrás, que vai esvoaçando enquanto se anda. Ou melhor, se dança.

    Sim, o amor terá de dançar e cantar o mais sublime dos cânticos, hino de graças. Porque não há graça maior que a presença do amor.  “Detiene a los peregrinos / Libera a los prisioneros... El amor com sus esmeros/ al viejo lo vuelve niño... Se va enredando / enredando / como en el muro la hiedra / y va brotando / brotando/ como el musguito en la piedra”. Versos que Mercedes Sosa cantou até morrer.

    Quero cantar o amor até morrer. E estar saudável ao cruzar com ele. Se o amor chegar, quero saber. Mulher curiosa, atenta, adivinhando a sua luz. Brilhe o amor e ilumine este mundo em trevas. Quem mais, senão o amor poderá ensinar o caminho de volta? É bom ir, mas é melhor voltar.

    Amar é como voltar para casa, depois da viagem. A nossa cama, o nosso quarto, nossa cozinha, a roupa a ser lavada. O sol brilhando e lá fora um varal de sonhos. Deus sabe como encantar nossa existência terrena. Por isso, meu Deus, se o amor chegar...

 

No meu governo

 

Marisa Bueloni

   No meu governo, eu, e mais ninguém, posso dizer que as coisas se passaram dentro da mais absoluta normalidade. Tudo transcorreu de forma transparente e nós, jamais, por mais que digam o contrário, fizemos algo que, veja bem, fosse contra os princípios da democracia.

    No meu governo, posso dizer, e devo dizer à nação, sempre houve perseguições. Fomos e somos perseguidos. Se os senhores pensam que foi fácil chegar até onde cheguei, estão errados.

    Nunca, no meu governo, nem neste e nem nos anteriores do meu companheiro Lula, fizemos algo que justifique esta barbárie que estão cometendo contra nós. É golpe, sim. Eu nada fiz para merecer tamanha injustiça.

    No meu governo, eu pedalei todas as manhãs ali nas proximidades do Palácio onde resido, porque no meu governo andar de bicicleta me fez muito bem. Até porque, vocês sabem, é um exercício muito saudável pedalar.

    Mas, no meu governo, sou acusada de outras pedaladas, as fiscais, coisa que repudio com total veemência. Total veemência. Nunca no meu governo houve as tais pedaladas que eles dizem que ocorreram. Eu desafio a quem quer que seja, provar que elas existiram.

    No meu governo, as políticas sociais foram implantadas e agora, admito, por intriga da oposição, não tenho mais dinheiro para manter os programas sociais criados no meu governo. Pronatec, Minha casa minha vida, Fies, Bolsa Família e tantos outros, eu vou deixar para o próximo governo.

    No meu governo, tudo foi feito para que até o vento pudesse ser estocado e aproveitado. Tal como o presidente Lula facilmente teria resolvido o problema do aquecimento global, se a Terra fosse quadrada, eu também teria, hoje, no meu governo, um bom estoque de vento para que a energia não faltasse em nosso país.

    Antigamente, os índios, a fauna e a flora morriam por falta de assistência técnica, mas no meu governo isso foi resolvido. Foi solucionado, a partir de uma política que, além de manter os nossos programas mais prioritários, deu a todos mais esperança com nossa assistência técnica altamente especializada.

    No meu governo, surgiu uma mulher sapiens, a mãe, aquela que, sendo mãe, é mulher. Porque a mulher não é homem. Mas é a mulher, e não o homem, que dá à luz e provê o seu lar. Não, não é o homem. É a mulher, e eu digo, porque se eu não disser, vão dizer que eu não disse. Então, está dito.

    Mais uma coisa. No meu governo, a Petrobras sempre foi respeitada. Repito: respeitada. Nunca houve desvio de dinheiro, nem contratos irregulares, nada do que “eles” dizem. Eu quero esclarecer isso de uma vez por todas. Que fique claro que nós, no meu governo, tudo faremos para combater a corrupção.

    Portanto, no meu governo, posso dizer e repito aqui com toda ênfase, tudo correu às claras, ninguém maquiou contas para ganhar eleição. O que estão praticando contra mim fere o estado de direito e a democracia. Posso não estar muito ciente do que isso significa, mas repito porque ouço falar.

    É golpe, senhores. Golpe! Eles querem chegar ao poder puxando o meu tapete e eu não vou para debaixo dele. Eu vou passar com minha bicicleta por cima de qualquer tapete que apareça na minha frente. Repito: é golpe!

 

NÃO É NADA 

 

Marisa Bueloni

   Não é nada,
meu amor
só um pouco
de dor

Não é nada,
vai passar
quando eu for
me deitar

Não é nada,
por favor
só um leve
tremor

Não é nada,
um mau jeito
e um aperto
no peito

Não é nada,
amanhã
eu levanto
boa e sã

Mas se o dia
raiar
e eu não
acordar

Seja lá
como for
não foi nada,
meu amor...

 

Declaração

 

Marisa Bueloni

   Alguns dizem "eu te amo"

assim a esmo

comendo salame, queijo, torresmo

e virando um copo de cerveja

 

Alguns dizem "eu te amo"

de qualquer jeito

como se arrotassem

como se não guardassem

o menor respeito

 

Alguns dizem "eu te amo"

lendo jornal

fazendo bolo, consertando o varal

como se o amor fosse uma pedra bruta

da qual se extrai uma rima fajuta

sem brilho e sem valor

 

Mas eu não, meu amor