Revelações Particulares - Orientações
Dom
Nelson Westrupp, SCJ
Bispo diocesano
Visto que muitos de nossos diocesanos e
diocesanas insistentemente nos pedem uma palavra de esclarecimento a respeito
de aparições, possíveis revelações particulares e alocuções
interiores, as presentes ORIENTAÇÕES PASTORAIS, assim o esperamos,
deverão servir de base para o posicionamento de nossos queridos diocesanos
sobre esses assuntos.
'Muitas vezes e de modos diversos falou Deus,
outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos,
falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e
pelo qual fez os séculos' (Hb 1,1-2).
'Deus é amor' (1 Jo 4,8), e quer livremente partilhar com os homens Sua vida
e felicidade. Por isso, Deus se revela. Revelar quer dizer levantar
o véu. Desde a origem do mundo, Deus se dá a conhecer, por meio das
coisas criadas que, em sua beleza e harmonia, são um testemunho perene da
bondade do Criador (cf. Rm 1,19-20). 'Com a sua
abertura à verdade e à beleza, com o seu senso do bem moral, com a sua
liberdade e a voz da sua consciência, com sua aspiração ao infinito e à
felicidade, o homem se interroga sobre a existência de Deus' (CIC 33), de modo
que em toda parte, mesmo os que nunca tiveram contato
com as Sagradas Escrituras nem ouviram falar de Jesus Cristo, podem conhecer a
Deus como princípio e fim último de todas as coisas à luz da razão natural
(Concílio Vaticano I: DS 3004; DV 6; CIC 36).
Além desta revelação
natural, 'Deus, que ‘habita uma luz inacessível’ (1 Tm
6,16), quer comunicar a sua própria vida divina aos homens' (CIC 52). 'Aprouve
a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si
mesmo e tornar conhecido o mistério de Sua vontade (cf. Ef
1,19), pelo qual os homens, por intermédio do Cristo, Verbo feito carne, e no
Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina
(cf. Ef 2,18; 2 Pd 1,4)'
(DV 2; CIC 51). Para isso, Deus escolhe Abraão, em quem serão abençoadas todas
as nações da terra (cf. Gn 12,3). 'Depois dos
patriarcas, Deus formou Israel como seu povo, salvando-o da escravidão do Egito. Fez com ele a Aliança do Sinai e deu-lhe, através de
Moisés, a sua Lei, para que o reconhecesse e o servisse como o único Deus vivo
e verdadeiro' (CIC 62). A esse povo, através dos patriarcas e profetas, Deus se
revela de maneira particular, para que fosse 'a raiz sobre a qual serão
enxertados os pagãos tornados crentes' (CIC 60; cf. Rm
11,17-18.24). Esta autocomunicação de
Deus na história tem na Encarnação do Verbo a sua plenitude. 'Cristo, o Filho
de Deus feito homem, é a Palavra única, perfeita e insuperável do Pai. Nele o
Pai disse tudo, e não haverá outra palavra senão esta' (CIC 65). Por isso, 'já
não há que esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa
manifestação' de Cristo no final dos tempos (cf. DV 4). Esta revelação
especial ou sobrenatural está consignada nas Sagradas Escrituras, sendo
garantida em sua infalibilidade por uma assistência especialíssima do Espírito
Santo, que conferiu aos Hagiógrafos ou Escritores Sagrados
os carismas extraordinários da revelação e da inspiração.
Desta maneira, podemos dizer que a Bíblia, embora escrita por homens os mais
diversos, é de fato Palavra de Deus.
Por outro lado, 'embora a
Revelação esteja terminada, não está explicitada por completo; caberá à fé cristã
captar gradualmente todo o seu alcance ao longo dos séculos'. É neste sentido
que devemos entender o desenvolvimento do dogma na Igreja: não se trata de
novas revelações, mas de um aprofundamento, um desabrochar de verdades já
contidas no depósito da fé.
'No decurso dos séculos houve revelações
denominadas ‘privadas’, e algumas delas têm sido reconhecidas pela autoridade
da Igreja. Elas não pertencem, contudo, ao depósito da fé. A função delas não é
‘melhorar’ ou ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a viver
dela com mais plenitude em uma determinada época da história. Guiado pelo
Magistério da Igreja, o senso dos fiéis sabe discernir e acolher o que nessas
revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou dos seus santos à Igreja'
(CIC 67). É o caso, por exemplo, das aparições da Mãe de Deus em Fátima ou
Lourdes. Note-se que o nome 'revelação privada' não quer significar que tais
'revelações' não sejam conhecidas pelo grande público, ou que digam respeito
apenas aos videntes ou a um círculo limitado de pessoas. Pode se tratar de um fenômeno de repercussão nacional ou mesmo mundial. No
entanto, tais possíveis 'revelações' são ditas, ainda assim, 'privadas' ou
'particulares' porque não fazem parte do depósito da fé católica. Em outras
palavras, nenhum católico está obrigado a aceitá-las, mesmo quando já
consagradas pela devoção do grande público, ao contrário do que acontece com a revelação
especial, tal como nos é apresentada nas Sagradas Escrituras e
transmitida pelo magistério da Igreja. Neste caso, todo católico tem a
obrigação de acatar tudo o que a Igreja propõe como verdade de fé e de moral.
'A fé cristã não pode
aceitar ‘revelações’ que pretendam ultrapassar ou corrigir a Revelação da qual
Cristo é a perfeição. Este é o caso de certas Religiões não-cristãs
e também de certas seitas recentes que se fundamentam em tais ‘revelações’'
(CIC 67), como é o caso, por exemplo dos Mormons ou
do Espiritismo.
Ultimamente, tem-se multiplicado o fenômeno de aparições atribuídas a Nossa Senhora, tanto no
Brasil como no estrangeiro. A respeito de tais fenômenos,
existem opiniões favoráveis e opiniões contrárias. O que a Igreja tem a dizer?
A Igreja é cautelosa;
antes de se pronunciar a respeito de alguma aparição, manda examinar o caso
criteriosamente, pois sabe que muitas vezes os fiéis, com toda boa fé, podem
imaginar estar vendo e ouvindo o que não passa de projeções de sua fantasia.
Não existe legislação canônica sobre a avaliação do fenômeno
das aparições e manifestações miraculosas. O Direito Canônico
cala sobre o assunto. O que existe é uma práxis
observada pelos bispos e pela Sé Apostólica. Os critérios básicos são os
seguintes1:
A) Critérios a respeito dos videntes:
- Deve ser verificado o
estado de saúde física e mental dos videntes por parte de médicos
competentes e psicólogos ou psiquiatras a fim de que não se confunda alucinação
com visão.
- É importante verificar
se há falta de sinceridade e de humildade da parte dos videntes, se há
interesse em tirar proveito próprio ou em se colocar no centro das atenções.
- Verificar os
contra-testemunhos que os videntes apresentam na vida cotidiana,
a falta de respeito e de obediência aos pastores, a exploração das emoções com objetivos comerciais, políticos ou outros interesses.
- O objetivo
de qualquer revelação autêntica é a edificação da Igreja. Por isso, tudo o que
a divide, tudo o que leva ao pecado, tudo o que não leva à evangelização não
pode vir de Deus.
'Os videntes deixam de ter
credibilidade a partir do momento em que procuram sustentar com apoio
celestial, portanto, com autoridade pretensamente superior à da Igreja,
uma certa orientação doutrinária, da qual se estivesse convencido; ou então
promover mais facilmente certos aspectos da vida cristã, como os sacramentos,
valendo-se da tendência das massas para o maravilhoso'2.
B) Critérios a respeito da mensagem
transmitida pela aparição
São basicamente três os
critérios a serem indicados aqui:
1o)
Ortodoxia: o conteúdo da mensagem das aparições não pode estar em
contradição com a revelação bíblica, nem com a doutrina da Igreja.
2o)
Convergência: O conteúdo da mensagem deve estar em sintonia com as
linhas pastorais da Igreja e os pastores podem encontrar nessa mensagem matéria
para incentivar a vida pastoral e a conversão e renovação da vida cristã.
3o)
Coerência: Deve haver uma coerência entre o que os videntes vêem, ouvem
e dizem. O conjunto deve formar uma mensagem coerente.
Além disso, toda autêntica
aparição há de ser coerente com as linhas e o espírito do Evangelho. Assim, as
muitas minúcias (quanto a datas, local, duração e tipo dos fenômenos
preditos) merecem reservas, pois não são habituais na linguagem da Sagrada
Escritura. O Senhor Jesus mesmo recusou-se, mais de uma vez, a revelar a data
de sua vinda e do fim dos tempos (cf. Mc 13,32; At 1,7).
C) Critérios a respeito das
ressonâncias da aparição
1o) Sinais:
O fenômeno pode estar acompanhado de milagres, curas,
conversões, fenômenos cósmicos extraordinários em
favor da veracidade da aparição, os quais, porém, devem ser cuidadosamente
examinados pela ciência e pela teologia. E como dizia o Papa João XXIII, em sua
radiomensagem de 18/02/1959, comemorativa do centenário de Lourdes, que os dons
extraordinários são concedidos aos fiéis 'não para propor doutrinas novas, mas
para guiar nossa conduta'3.
2o) Que
Frutos espirituais estão surgindo em decorrência da aparição? Trata-se
de conversões, renovação da vida cristã, devoção mais intensa e mais
qualificada a Nossa Senhora, amor à Igreja, vocações missionárias, sacerdotais
e consagradas?
Caso o resultado dos
exames acima sejam positivos, a Igreja não somente permite, mas favorece o
culto ao Senhor ou ao santo(a) que se julga ter aparecido. É o caso do culto a
N. S. de Fátima ou de Lourdes, havendo inclusive a festa respectiva no
calendário da Igreja. Importante: embora a Igreja favoreça o
culto a Nossa Senhora em tal ou tal lugar, ela não obriga os fiéis a acolher as
respectivas revelações particulares, uma vez que elas não fazem parte do
depósito da fé: fica a critério de cada fiel julgar as razões pró e contra a
autenticidade de cada 'aparição' não condenada pela Igreja e daí
assumir ou não sua mensagem para a própria vida.
A respeito de tais fenômenos extraordinários, o Papa Bento XIV (1740-1758)
publicou o seguinte: 'A aprovação (de aparições) não é mais do que a
permissão de as publicar, para instrução e utilidade dos fiéis, depois de
maduro exame. Pois estas revelações assim aprovadas, ainda que não se lhes dê
nem possa dar um assentimento de fé católica, devem contudo ser recebidas com
fé humana segundo as normas da prudência, que fazem de tais revelações objeto provável e piedosamente aceitável'4.
Esta posição tornou-se clássica na prática da Igreja.
Pode acontecer ainda que a
Igreja se abstenha de qualquer pronunciamento a respeito dos fenômenos e do culto prestado em decorrência dos mesmos. É
o que acontece na maioria dos casos: não há motivos para condenar os fenômenos relatados; nem a saúde mental dos (as) videntes
dá lugar a suspeitas nem as mensagens apresentadas por eles contêm alguma
heresia ou erro na fé. A Igreja considera os frutos pastorais que decorrem de
tais mensagens: muitos fiéis se beneficiam peregrinando a tal ou tal lugar ou santuário;
aí se convertem, recuperam ou adquirem o hábito da prática sacramental, da
oração... Por tudo isso, a Igreja deixa que a piedade se desenvolva até haver
razões de ordem doutrinária ou moral que exijam algum pronunciamento.
Diante dos fenômenos de aparições e revelações particulares, a Igreja
tem a obrigação de ser prudente. Ela é responsável pela preservação da doutrina
da fé. Por um lado, ela sabe que o Espírito Santo pode falar por vias
extraordinárias, de tal modo que não lhe é lícito extinguir o Espírito (cf. 1 Ts 5,19s); por outro lado, o extraordinário não é a via
normal pela qual Deus guia seus filhos. A fé madura não diz Sim a
qualquer notícia sobre portentos, prodígios e milagres, mas pergunta sempre:
por que deveria eu crer? Qual a autoridade de quem me transmite a notícia? Em
que se baseia? Como fala?
Do que foi dito, segue
que:
a) aparições e revelações
particulares não devem ser presumidas nem admitidas em primeira instância num
juízo precipitado. Os fenômenos alegados hão de ser
comprovados ou criteriosamente credenciados;
b) diante de um fenômeno tido como extraordinário, procurem-se, antes do
mais, as explicações ordinárias ou naturais (físicas, psicológicas, parapsicológicas);
c) é preciso levar em
conta a fragilidade humana, sujeita a engano, sugestões, alucinações coletivas, etc. Facilmente quem conta um fato
acrescenta-lhe ou subtrai-lhe um traço que pode ter importância; em conseqüência, um acontecimento explicável por vias naturais
pode tornar-se, na boca dos narradores, um fenômeno
altamente portentoso. Daí o senso crítico, que deve começar por investigar de
que realmente se trata, para depois procurar a explicação adequada. Leve-se em
conta especialmente a tendência dos meios de comunicação social a provocar artificiosamente
as emoções e o sensacionalismo, sem compromisso sério com a verdade.
A Diocese de São José dos Campos, na pessoa
de seu Bispo Diocesano, apresenta as seguintes orientações para a prática do
povo de Deus:
a) Não se faça, em nome de
Pastorais, Movimentos e Espiritualidades, lotações para afluírem aos locais de
supostas aparições.
b) Não se divulgue nas
Pastorais, Movimentos e Espiritualidades, folhetos, apostilas, fitas cassete ou
vídeos com mensagens de cunho milenarista, apocalíptico ou catastrófico.
c) Seja mantida a devida
prudência com relação aos escritos de pessoas que teriam a faculdade de locução
interior. O devido cuidado deve ser tomado de não colocá-los em forma de
leitura espiritual como substituto ou auxiliar da Palavra de Deus.
d) Cada coordenador tenha
como referência, para orientações com relação a esta temática, além das
presentes orientações, os Subsídios Doutrinais 1 da CNBB, intitulado 'Aparições
e revelações particulares'.
e) Em última instância,
prevaleça sempre a palavra do Bispo Diocesano.
Gostaria de terminar essas orientações
pastorais, recordando o que nos ensina o Vaticano II sobre o culto da
Bem-aventurada Virgem, o qual admoesta todos os filhos e filhas da Igreja 'a
que generosamente promovam o culto, sobretudo o litúrgico, para com a
Bem-aventurada Virgem, dêem grande valor às práticas e aos exercícios de
piedade recomendados pelo Magistério no curso dos séculos e observem
religiosamente o que em tempos passados foi decretado sobre o culto das imagens
de Cristo, da Bem-aventurada Virgem e dos Santos' (LG 67).
'Ademais, saibam os fiéis
que a verdadeira devoção não consiste num estéril e transitório afeto, nem numa certa vã credulidade, mas procede da fé
verdadeira pela qual somos levados a reconhecer a excelência da Mãe de Deus,
excitados a um amor filial para com nossa Mãe e à imitação das suas virtudes' (ib.,67);
Enquanto peregrinamos,
Maria será a mãe educadora da fé (cf. LG 63). Ela cuida que o Evangelho nos
penetre intimamente, plasme nossa vida de cada dia e produza em nós frutos de
santidade (cf. Puebla, 290).
Como pastor da Diocese de
São José dos Campos, envio a todo o Povo de Deus que aqui peregrina, minha
saudação e a bênção em Cristo Ressuscitado.
Decreto: Que esta Carta Pastoral seja afixada em lugar visível para os fiéis e
publicada no Jornal Expressão.
São José dos Campos, 25 de março de 1996.
Dom
Nelson Westrupp, SCJ
Bispo diocesano
1 O documento de referência é uma nota confidencial da Congregação
para a Doutrina da Fé, de 25 de fevereiro de 1978.
Veja-se também: R. PANNET, Les Apparitions Aujourd’hui. 1988,
p.145-146.
2 Cf. C. I. GONZALEZ, Maria,
Evangelizada, Evangelizadora. CELAM, Ed.
Loyola, 1990, p.401-402.
3 Cf. Pergunte e
responderemos, setembro de 1995,
p.392-393.
4 De Servorum Beatificatione II, c.32,11.
N.B.: Na
elaboração deste documento, foram consultadas, entre outras, as seguintes
fontes:
- Aparições e
Revelações particulares (Subsídios Doutrinais 1, CNBB), Ed.
Paulinas.
- Compêndio do Vaticano II (DV e LG).
- Catecismo da Igreja Católica (CIC).
- JOÃO PAULO II, Redemptoris
Mater.
- CARLOS IGNÁCIO GONZALES, Maria,
Evangelizada e Evangelizadora, CELAM, Ed. Loyola., 1990.
- ESTÊVÃO BETTENCOURT, OSB , Pergunte e
Responderemos, setembro de 1995.
- STEFANO DE FIORES, Dicionário de Mariologia. Ed. Paulus, 1995.
- DOCUMENTO DE PUEBLA.